AndrĂ©a Pachá ficou conhecida dos leitores em 2012, quando seu livro de estreia A vida nĂŁo Ă© justa virou um best-seller. A obra compila crĂ´nicas e depoimentos recriados pela autora a partir de sua atuação frente a uma Vara de FamĂlia no Rio de Janeiro. SĂŁo observações a respeito dos conflitos nos tribunais e da necessidade de compreender o fenĂ´meno que leva os casais, muitas vezes, ao limite do Ăłdio e da intolerância.
O livro ganhou ainda mais repercussão quando virou uma série do programa Fantástico, da TV Globo, em 2016, com o nome de Segredos de Justiça. Agora, dez anos depois da primeira publicação, A vida não é justa ganha uma reedição acrescida de novos textos.
Hoje desembargadora, AndrĂ©a tem uma relação Ăntima com a palavra escrita muito antes de o Direito entrar em sua vida. “NĂŁo consigo lembrar de algum tempo da vida em que eu nĂŁo precisasse escrever para entender o mundo”, diz.
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
NĂŁo consigo lembrar de algum tempo da vida em que eu nĂŁo precisasse escrever para entender o mundo. Dos diários da infância, Ă s cartas da adolescĂŞncia, passando pelas anotações dos pensamentos e sentimentos, escrever, para mim, sempre foi como respirar. Nunca havia pensado em ser escritora como uma atividade profissional. Embora participante de um grupo de dramaturgia, coordenado por Alcione AraĂşjo, e já advogada, ofĂcio que me exigia a escrita como ferramenta, me perceber escritora veio apĂłs a publicação do meu primeiro livro de crĂ´nicas, em 2012. Quando experimentei a chegada do texto a muitos olhares, quando recebi de leitores mensagens de identidade ou crĂticas a minha produção literária, ali entendi que queria ser escritora. Foi a partir da percepção de que escrever pressupõe o encontro com as leitoras e os leitores, que transformam o texto em matĂ©ria viva.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Tento transformar a experiĂŞncia cotidiana em um processo de criação permanente. NĂŁo consigo ir ao mercado, caminhar no calçadĂŁo, ou atĂ© mesmo atender um telefonema de telemarketing, sem imaginar as histĂłrias que existem na vida das pessoas que atravessam o meu caminho. Tenho sempre uma caderneta, na bolsa. Quando a histĂłria nĂŁo chega pela voz dos outros, eu invento as personagens que, imagino, existem naquelas histĂłrias. Gosto de ouvir conversas entrecortadas nas caminhadas, no metrĂ´, nos elevadores, e escrever a partir das frases soltas. Tenho mania de colecionar esses recortes, e sempre que possĂvel, inserir em algum texto.
• Que leitura Ă© imprescindĂvel no seu dia a dia?
NĂŁo começo o dia sem a leitura de, ao menos, dois jornais. Sou obcecada por informação e, para minha sorte, encontro colunistas afinadĂssimos, capitaneados por Dorrit Harazim, Joaquim Ferreira dos Santos, Eliane Brum, Eugenio Bucci, Flavia Oliveira, Miriam LeitĂŁo, entre tantos outros, que alĂ©m de informar, escrevem lindamente. Ao lado da leitura informativa, essencial nesses tempos de mentiras, tenho sempre Clarice Lispector na cabeceira. NĂŁo consigo ler um livro de cada vez, e tenho hábito de voltar a leituras que fiz no passado. Clarice nunca ficou no passado e Ă© sempre simultânea dos demais livros. Ler Clarice, nem que seja uma frase por dia, Ă© um jeito de nĂŁo esquecer por que eu quero ser escritora.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Galileu Galilei, do Brecht. No inĂcio, havia pensado em alguma obra de um autor brasileiro, mas penso que o presidente conhece o Brasil profundamente. Galileu Ă© um texto muito atual. Discute o monopĂłlio da verdade, a compreensĂŁo de que, muitas vezes, pactuar nĂŁo Ă© retrocesso, mas garantia de sobrevivĂŞncia. E o texto Ă© muito bem construĂdo, revelador das nossas contradições, vaidades e escolhas.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Preciso de uma tela aberta e de silĂŞncio. Escrever, para mim, exige concentração. Quando sento para escrever, muitas vezes, as palavras já estĂŁo gestadas, mas nĂŁo tenho fantasias ou idealizações sobre circunstâncias ideais. Escrever Ă© um exercĂcio difĂcil e, como todo exercĂcio, quanto mais eu escrevo, melhor para escrever.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Leio em qualquer lugar, embora o ideal seja durante um longo perĂodo de Ăłcio, nas fĂ©rias, que no meu caso, Ă© cada vez mais raro. Se eu precisasse descrever um lugar perfeito para ler um livro, seria numa rede, com o barulho do mar ao fundo.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Os dias em que consigo ter tempo para trabalhar um texto sem pressa. Depois do primeiro copião, conseguir voltar à produção e encontrar a forma ou as palavras que cabem exatamente no que eu quis escrever.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
É exatamente esse retorno ao texto. Chamo do tempo do bordado. Depois que a ideia está posta, voltar Ă s palavras, enxugar o que sobra, substituir por outras rendas e cores. O mais difĂcil, para concluir um livro e enviar para a publicação, Ă© abrir mĂŁo desse momento extremamente prazeroso.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
Cada escritor deve ter seu prĂłprio demĂ´nio. No meu caso, a procrastinação Ă© o maior inimigo. Alimento as ideias por longos anos, atĂ© ter coragem de transformá-las em textos para publicar. Um outro inimigo que, certamente, tenho abandonado Ă medida que os anos passam, Ă© minha excessiva autocrĂtica. É um sentimento que paralisa, e muitas vezes impede que um texto circule livremente.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A dificuldade de ampliar o espaço comercial para muitos autores jovens, excepcionais, que não conseguem decolar na profissão pelas limitações do mercado.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Socorro Acioli.
• Um livro imprescindĂvel e um descartável.
NĂŁo gosto da ideia de livro descartável. Assim como os relacionamentos tĂłxicos, tambĂ©m eles nos transformam no que somos. Um livro imprescindĂvel: Cem anos de solidĂŁo, do GarcĂa Márquez.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A tentativa do autor de tutelar a liberdade do leitor. Um livro que dita regras, estabelece comportamentos, elimina as contradições.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
NĂŁo consigo imaginar um assunto que jamais entraria na minha literatura. Nem consigo imaginar qualquer literatura sem um exercĂcio de liberdade total.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Na fila de um banheiro de um bar.
• Quando a inspiração nĂŁo vem…
Eu escrevo sem parar, até que ela volte.