Desde que se “descobriu” escritor, ainda na adolescência, o carioca Tom Farias trafega por vários gêneros literários: da crítica ao ensaio, passando pela prosa e pela biografia. Também é jornalista e roteirista de TV. “Leitura e escrita estão intrinsicamente dentro de minha rotina diária, esteja onde eu estiver, aconteça o que acontecer”, diz.
Autor de 18 livros, publicou as “afrobiografias” de Carolina de Jesus, Cruz e Sousa e José do Patrocínio. Seu mais recente romance é Toda fúria, publicado em 2023 pela Autêntica.
Nesta edição do Inquérito, ele fala um pouco mais de suas influências, do seu método de trabalho e da sua devoção à leitura e à escrita. “Escrever me conforma — tanto quanto me conforta.”
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Meu dilema com a escrita, não propriamente o fato de ser escritor, ocorreu ainda no início da adolescência, quando descobri os livros deixados pelo meu pai, morto precocemente em 1969, quando eu tinha 9 anos. O acesso a esses livros, suas leituras constantes, me levou à escrita de diários — passo inicial para a feitura de meus primeiros poemas, textos em prosa e minha entrada no jornalismo.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Não sei dizer se é exatamente uma obsessão, mas gosto de ler e escrever, como exercício de memória e prática, todos os dias. Como jornalista profissional, é uma tarefa que faz todo o sentido. Leitura e escrita estão intrinsicamente dentro de minha rotina diária, esteja onde eu estiver, aconteça o que acontecer.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Na parte da manhã, leio os noticiários, respondo mensagens — sempre por escrito. Em seguida, leio umas quatro horas — cerca de 80 páginas — e escrevo no restante do dia. Nunca excedo oito horas de “trabalho”.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Caramba, ao Lula? Penso que, sem citar títulos, recomendaria (que ousadia essa) romances ou biografias, especialmente de políticos, que sei que ele aprecia muito.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Não há circunstâncias “ideais” quando a matéria que faz seu meio de vida é a escrita. No meu caso, é preciso escrever logo e objetivamente. É preciso “arrancar” a escrita do seu mais fundo abismo, como o minerador em busca da melhor pepita de ouro ou diamante. Em O cemitério dos vivos, Lima Barreto diz: “Ou a literatura me mata ou me dá o que peço dela”. Estou visceralmente com o velho Lima.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Leio ordinariamente por uma questão profissional, nem sempre por hobby. Dito isso, vou construindo o meu ideal, sem colocar nada em determinada caixinha. A leitura faz parte de um universo paralelo: toda vez que se abre um livro, devemos pensar que atravessamos um portal. A vida do personagem se mistura com a nossa, tornando-o próximo de nós.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Considero um bom dia de trabalho quando me vejo realizado no processo da escrita — posso ter escrito uma linha, uma lauda ou 50 páginas. Vivi isso durante a pandemia, quando escrevi A bolha (Patuá), meu romance sobre uma catástrofe pandêmica, em apenas seis dias.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Penso que o processo de minha imersão, quando me encontro com o tema e o domino sob todos os aspectos, a ponto de torná-lo irretocável — o que nem sempre ou quase nunca acontece.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
O maior inimigo do escritor é a preguiça, a pressa e a falta de repertório, dada pela falta de conteúdo.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Penso que certo estrelismo. Vejo que há pessoas muito iludidas com o meio literário, achando que ele se completa apenas com a publicação de um livro. Sou de um tempo em que os melhores escritores, os referenciados em sala de aula, seja do ensino básico ou superior, estavam mortos. Hoje não, os escritores estão vivíssimos, cruzando com os leitores. É preciso, nesse meio, ter humildade, e ela deve começar com respeito ao profissional e a seus leitores.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Há uma geração nova que precisa de melhor atenção, mas que só acessa a literatura, a indústria do livro, por meio dos concursos. O eixo sudestino é muito prejudicial aos artistas em geral e aos criadores literários, em particular. É duro reconhecer o talento de Jeferson Tenório ou Eliane Marques, exatamente porque entendem que estão no Sul, fora do eixo. O confinamento de grandes talentos é gritante.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Os livros dos mais velhos, hoje clássicos, como Machado de Assis, Lima Barreto, Ruth Guimarães, Carolina Maria de Jesus, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, etc.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Penso que são muitos, o principal é deixar nosso personalismo corromper a literatura. Ao acharmos que somos os melhores criadores do mundo, subestimamos o ponto crucial da criação: o senso crítico de quem nos lê.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
A literatura comporta de tudo. Quem nos lê é que pode ter o senso crítico para dizer o que é assunto bom ou ruim. Hoje os livros de Monteiro Lobato são taxados de racistas e propagadores do eugenismo, mas na época dele, nem tanto. Portanto, o que se está escrevendo hoje — achando que seja o politicamente correto — pode não corresponder às expectativas no futuro.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
No metrô. E estava superlotado, a ponto de não conseguir tirar da bolsa o meu caderninho de anotações. Fiquei memorizando o que me veio à mente, que achava genial, até o meu ponto de desembarque. O problema é que depois que cheguei, vi que a ideia não era tão boa como eu imaginava.
• Quando a inspiração não vem…
Como não posso depender dela. Na minha atividade profissional, ela nunca se escora em mim.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
São tantos. Mas penso no Cruz e Sousa, que gostava de frequentar um café (junto com Hemetério dos Santos, o gramático) numa rua lateral ao Real Gabinete Português de Leitura; Machado de Assis, que gostava de caminhar pelas ruas do centro; Lima Barreto, especialmente quando danava a falar mal de políticos e literatos da Academia Brasileira de Letras. Mas apreciaria muito estar na companhia de Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus.
• O que é um bom leitor?
Aquele que me levanta do chão…
• O que te dá medo?
Não ter mais a capacidade de continuar lendo e escrevendo.
• O que te faz feliz?
Certa feita vi uma dupla — um casal, na verdade, parecia de namorados — falando de um livro meu, bem ao meu lado, sem ter me conhecido, pela obra e pela fisionomia. Por instantes, eu me senti feliz, exatamente por saber até aonde cheguei.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Parece pergunta do Enen, de tão capciosa que é. Sempre quando começo um trabalho novo, a dúvida é se chegarei até o final — e se este será satisfatório. A certeza é que ainda tenho capacidade criativa. Isso me conforta.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não há, necessariamente, uma preocupação, lato sensu da palavra. Escrever me conforma — tanto quanto me conforta. Busco na literatura o que Ferreira Gullar buscava na poesia. Escrever para o poeta maranhense valia porque a vida não bastava.
• A literatura tem alguma obrigação?
Penso que a obrigação da literatura é ter uma missão. De resto é optativa e exclusiva de quem a faz.
• Qual o limite da ficção?
O limite ou a falta dele é ultrapassar o óbvio. Em verdade, a ficção não se faz sozinha, fora da realidade; mas se presta — sozinha e com a realidade.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Levaria direto à minha emoção. Sem emoção, ninguém é exatamente nada. Ela lidera nossos corpos, nossas mentes, nossos sentidos.
• O que você espera da eternidade?
Que ela não exista, como suponho.