A subversão da verdade

Rodrigo Petronio: “A literatura é uma investigação exaustiva e vertical das relações entre linguagem, afeto e pensamento”
Rodrigo Petronio, autor de “Fim da Terra”
01/08/2023

Rodrigo Petronio é um escritor que divide seu tempo entre a academia e a literatura. Daí ele e sua escrita trafegarem por caminhos que vão além da ficção, da prosa e da poesia.
A filosofia tem um lugar de destaque em sua obra, como o próprio escritor deixa claro neste Inquérito. “Por volta dos 14 ou 15 anos, a literatura e a filosofia me sequestraram. Sou um prisioneiro feliz desde então”, diz o escritor, que em 2022 lançou a coletânea de contos O último Deus e o livro de poesia Fim da Terra. São os mais recentes títulos de uma já longa trajetória, com mais de 15 livros, sobre diferentes áreas do conhecimento.
“Minha grande obsessão é entender a literatura como linguagem, em uma dimensão que extrapole a ficção e a poesia”, afirma. “Por isso a importância das obras reflexivas e de outras áreas do conhecimento em minha escrita.”

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Quando criança, tinha uma relação forte com desenhos animados e com ciência. Por volta dos 14 ou 15 anos, a literatura e a filosofia me sequestraram. Sou um prisioneiro feliz desde então.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
A literatura é o fogo da linguagem. Minha grande obsessão é entender a literatura como linguagem, em uma dimensão que extrapole a ficção e a poesia. Por isso a importância das obras reflexivas e de outras áreas do conhecimento em minha escrita. Aquilo que em nossa tristeza acadêmica e linguagem equivocada atuais chamamos de teoria. Uma frase de [Vilém] Flusser ou de [Gilles] Deleuze para mim podem disparar um incêndio. Um bom conto ou um bom poema que não me queimem, podem passar sem ser lidos.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Como professor e pesquisador, transito entre diversos tipos de literatura, de ficção e de não-ficção. A leitura imprescindível é aquela que será mais efetiva para aquilo que estou trabalhando.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
O capital, de Marx.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
A circunstância ideal é quando temos o máximo de tempo contínuo, sem interrupções ou outros compromissos fragmentados. Procuro cavar sistematicamente esses tempos e espaços na minha semana. Entretanto, escrevo muito no celular. Então, em todo lugar em que esteja, todo intervalo é motivo para escrever.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Leio em casa e em cafés. Em casa tenho meus hábitos. E os cafés são alguns (poucos). Gosto de ir sempre aos mesmos porque conheço a dinâmica do lugar. Eles são cada vez mais raros, pois o mundo anda cada vez mais intoxicado de lixo audiovisual e de gente que fala gritando. Um leve ruído de fundo entretanto ajuda na concentração.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando consigo dar forma a um projeto-manuscrito e compreendê-lo melhor, independentemente do número de laudas. Embora um dia de muitas páginas escritas também seja uma maravilha.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Tudo. Acima de tudo, sentir que a escrita é infinita, como queria [Maurice] Blanchot. A sensação de que sempre estou começando. Por mais livros que tenha publicado, a sensação de que tudo ainda está por ser feito.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O medo.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Diversas coisas. Fofoca, intriga, maledicência, tentativa de sabotar os outros. Infelizmente, essa é uma realidade em muitos meios da literatura. Por isso, há muito tempo adotei uma maneira bem pragmática de me relacionar com escritores. Só escrevo sobre obras que gosto. E só prestigio autores que admiro. E quanto mais consigo estabelecer essas relações afetivas e positivas, melhor. Perco muitos lançamentos por causa de aulas, compromissos, coisas da vida. Mas nunca vou a um lançamento ou encontro escritores apenas para ampliar redes de contato ou círculos sociais. E muito menos para falar mal dos outros.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Uma lista de autores obscuros. Eles, por si, formam um cânone da literatura mundial. Dos mais conhecidos: Paul Valéry.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: Os ensaios, de Montaigne. Descartáveis: todos que não sirvam para que o leitor aprofunde sua compreensão e sua relação com a vida.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A condescendência com consigo mesmo, com o leitor ou com as personagens.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Difícil. A literatura é amoral. É o reino da anarquia. Tudo que existe é passível de ser escrito. Dificilmente eu faria uma abordagem edificante das coisas. Uma escrita ideologicamente orientada e didatizada. Detesto tudo que dê alguma solução para o leitor, por melhor que seja essa solução.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
De um lixão.

• Quando a inspiração não vem…
Transpiração. Escrever notas, fragmentos, ideias, frases, coisas soltas. Escrever é um ato psicofísico. Quanto mais escrevemos, mais escrevemos. Não é a ideia que leva à escrita. Escrever é que produz ideias.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Dante Alighieri.

• O que é um bom leitor?
Um bom leitor é aquele que seleciona obras e autores que são essenciais para sua vida. E que aprofunda ao máximo a relação com essas obras-autores. Mas não acredito em leitores monogâmicos, leitores de um autor só. E nem nos poligâmicos, aqueles que se restringem a poucos autores e obras. O bom leitor está sempre traindo suas preferências para gerar novos horizontes de leitura. O bom leitor vive uma constante promiscuidade com as letras. Isso implica inclusive a leitura de muitas coisas que não sejam consideradas literatura. E mesmo uma transversalidade com outras artes.

• O que te dá medo?
Em termos estritos da escrita, ter alguma doença ou acidente que a inviabilize ou dificulte o uso na linguagem.

• O que te faz feliz?
Coisas simples. Pequenas viagens. O mar e as matas. Um almoço e uma cerveja com amigos. Caminhar pela cidade. Locais de que gosto e que revisito. Estar com pessoas que amo. As aulas e o contato com os alunos. Ler, escrever, escrever, ler, ler, escrever. E, acima de tudo, ter cada vez mais tempo e liberdade para fazer todas essas coisas.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Uma única certeza: a literatura é uma investigação exaustiva e vertical das relações entre linguagem, afeto e pensamento. As dúvidas: muitas. Elas que alimentam a única certeza.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não acredito em voz. O escritor é um animal esquizo, cheio de vozes. Ser verdadeiro parece algo vago e mesmo falso à medida que a literatura é uma subversão da verdade. Eu diria que minha preocupação é com a efetividade daquilo que escrevo. Algo efetivo é algo que cumpre da melhor forma aquilo a que se propõe.

• A literatura tem alguma obrigação?
Apenas e exclusivamente um compromisso radical com a liberdade e a alteridade.

• Qual o limite da ficção?
Não há limites.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
A Kafka.

• O que você espera da eternidade?
Que todos nós estejamos nela.

O último Deus
Rodrigo Petronio
Rua do Sabão
176 págs.
Fim da Terra
Rodrigo Petronio
Laranja Original
84 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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