Francesca Cricelli é poeta e tradutora literária. Atualmente vive na Islândia. Neste Inquérito, ela fala sobre como divide o tempo entre a atividade literária e a vida de trabalhadora imigrante no país nórdico.
Nesse cenário, a escrita, para ela, é um “ato de resistência”. “Sempre extraio alguma boa história, alguma fabulação que alimenta o texto”, diz. “Talvez seja minha forma de sobreviver psiquicamente.”
Entre seus títulos de poesia, estão Repátria (2015), 16 poemas + 1 (2017), As curvas negras da terra (2019), Errância (2019) e o recém-lançado Inventário (2024). É doutora em literaturas estrangeiras e tradução pela USP. Traduziu a obras das italianas Igiaba Scego e Lisa Ginzburg.
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Não sei se houve um momento específico. Lá por 2010-2011, escrevi uma peça baseada nas trocas de carta entre a escritora italiana Sibilla Aleramo e o poeta Dino Campana, também atuei nela junto ao poeta Alex Dias, que interpretava Dino. A peça se chamava O amor cantado no caos. A certa altura, durante os ensaios, pensei: não gosto tanto disso aqui, meu trabalho é escrever, não é o palco.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Não sei se é uma mania ou uma obsessão, talvez seja só um traço compulsivo obsessivo, mas eu não consigo sair de casa sem um livro na bolsa, na mochila. Nunca. Inúmeras vezes já voltei para casa porque saí sem livro. Sempre tenho uma fantasia que haverá algum contratempo e poderei ler um pouco. Em São Paulo, usando o transporte público, era fácil transformar o movimento pela cidade num momento prazeroso (e talvez alienante) de leitura. Confesso que tenho algumas bolsas-carteiras, dessas de usar à noite, onde consigo colocar pelo menos um livro de poemas. Andar sem livro me faz me sentir um pouco desprotegida e nua. Leio sempre que posso, nem que seja por um breve instante.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
O livro que considero o “meu” livro do momento. Uma leitura que faz parte de alguma curiosidade que estou cultivando. Agora estou lendo simultaneamente As abandonadoras, de Begoña Gómez Urzaiz (Zahar), a plaquette Cova profunda é a boca das mulheres, de Mar Becker (Círculo de Poemas), e ouvindo em audiolivro o romance da italiana Nadia Terranova, Addio fantasmi, ainda inédito no Brasil.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Jamais vivi circunstâncias ideais para escrever, sempre escrevi com muitas adversidades e empecilhos. Contudo, quando escrevi Errância (meu livro de prosas de viagem que saiu em 2019 pela Macondo e está esgotado), fiquei tomada por uma fúria deliciosa da escrita, nas madrugadas, podia me dar o luxo de dormir tarde e não acordar cedo. Não tinha filho.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Qualquer momento sem muitas interrupções. Eu li muitíssimo durante o puerpério, passamos esses meses coladinhos, Andri e eu, alternando sonecas às mamadas, numa perfeita comunhão, sentada na poltrona ou sofá, olhando de vez em quando pela janela, o mar revolto no inverno islandês, sempre com um livro na mão. Depois ele começou a olhar nos meus olhos para mamar e acabei deixando um pouco de lado os livros. Até ele dormir, pelo menos.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando consigo ler algumas horas, uma hora pelo menos. Quando consigo ter algumas horas com meu filho, não só nos cuidados, mas também brincando ou conversando, lendo para ele.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Quando percebo que há coisas que só podem nascer através do ato da escrita. Que elas podem pairar no pensamento, nas observações e anotações, mas há algo alquímico no encadeamento das palavras e isso me produz um prazer tão forte, um tesão mesmo.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
As coisas que competem com a escrita. O trabalho remunerado, necessário para sobreviver e manter a família — não o intelectualizado, como tradução literária ou aulas, mas o trabalho que faço aqui na Islândia, em que, como imigrante, só posso aumentar minha renda fornecendo à sociedade um serviço que ninguém quer fazer. Mas como num ato de resistência, sempre extraio alguma boa história, alguma fabulação que alimenta o texto. Talvez seja minha forma de sobreviver psiquicamente. A maternidade também é um pouco inimiga da escritora. Embora seja a melhor coisa da vida (para mim). Ela exaure. Se não me engano, Andréa del Fuego diz que filho e escrita têm ciúmes um do outro, não sei bem se ela o diz com essas palavras, mas é algo assim.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
As relações que são tecidas por mero interesse. O desaponto de perceber que alguém, no fundo, só espera receber alguma vantagem da relação. A exploração monetária, mas não só, de quem ocupa algum poder de mediação. Mas talvez isso seja comum em qualquer área, não só no meio literário.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Autoras que admiro muitíssimo e que deveriam ser mais lidas, com certeza: Ana Rüsche e Paula Fábrio.
• Um livro imprescindível e um descartável.
A obra completa do poeta polonês Zbigniew Herbert. Acho que qualquer livro de autoajuda seria descartável.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Um livro que quer explicar tudo ao leitor, que não leva em consideração sua inteligência.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não consigo imaginar um assunto excluído, a priori. A vida é uma onda que nos arrebate de forma inesperada e isso é algo que alimenta a literatura, a arte. Acho que meu movimento é estar à procura das minhas pequenas obsessões que encontram caminho na escrita, por isso não penso nas exclusões a priori.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Certa vez, um homem muito bonito, no qual eu estava muito interessada, contou-me uma história sobre um trabalho que ele fizera num outro momento de sua vida. Um momento em que trabalhava numa área completamente diferente da qual atuava naquele presente. Contou-me como reagem os ratos quando são dados como alimento às serpentes. Essa imagem foi tão absurda e intensa que rendeu um conto.
• Quando a inspiração não vem…
Adoro fazer uma longa caminhada e observar o céu que é sempre mutante aqui na Islândia, respirar o ar frio, olhar para o mar, ver como a natureza ao meu redor está mudando com a passagem das estações.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Eu gosto muito quando posso tomar um café ou chá com as autoras que traduzo e tenho a sorte de ter feito isso com Igiaba Scego e Lisa Ginzburg. De ter conversado com Claudia Durastanti. Mas da ordem do impossível, é óbvio que gostaria de tomar um chá com a Ferrante, outro com a avó da Lisa Ginzburg, a Natalia Ginzburg e, por fim, com o meu poeta preferido, Giuseppe Ungaretti (a quem dediquei muitos anos de estudo e uma tese de doutorado).
• O que é um bom leitor?
Um leitor que queira dialogar, às vezes, me parece um bom leitor. Gosto muito quando alguém que não conheço me escreve porque leu um poema meu ou uma tradução que fiz.
• O que te dá medo?
Perder o amor da minha vida.
• O que te faz feliz?
Estar com o amor da minha vida, meu filho. Estar com os amores da minha vida, ele e meu companheiro. Reencontrar minha família e meus amigos. Mas também estar sozinha. Viajar sozinha. Ler. Pesquisar. Escrever. Voltar ao Brasil e sentir que é o meu país, com todas as mazelas, ouvir o português sendo falado nas ruas como uma música que penetra meus ouvidos. Abraçar minha amiga Ligiana Costa, sentar à sua mesa e esperar que ela faça o café da manhã para mim.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Sempre uma dúvida e uma curiosidade guiam o meu trabalho, o desconhecido. E vem então a sensação de que algo será transformado e descoberto através dessa metamorfose que é a escrita.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que não haja nenhuma palavra a mais.
• A literatura tem alguma obrigação?
Nenhuma.
• Qual o limite da ficção?
Acho que os limites estão aí para serem desafiados. Cada momento literário apresenta alguém que tenta fazer essa transposição fronteiriça.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Ailton Krenak!
• O que você espera da eternidade?
Não sei se acredito em eternidade, então o que esperar dela?