A ficção como ética

Jacques Fux: “A Bíblia é um livro ao mesmo tempo imprescindível e descartável, dependendo do leitor”
Jacques Fux, autor de “Antiterapias”
01/09/2025

Na fronteira entre a literatura e a matemática, entre o rigor e a fabulação, Jacques Fux construiu uma obra singular, inquieta e inventiva. Com formação sólida — doutorado em Literatura Comparada pela UFMG e pela Université de Lille 3, além de pós-doutorados na Unicamp e em Harvard —, Fux publicou 19 livros, premiados e traduzidos em diversos países. Pelo romance Antiterapias, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013. Seus títulos — alguns publicados em Israel, Itália, México, França, EUA e República Dominicana — transitam com liberdade entre o romance, o ensaio, a literatura infantil e a crítica cultural, sempre guiados por uma escrita que valoriza a dúvida e a reescrita.

Neste Inquérito, Fux revela sua relação paradoxal com a escrita — ao mesmo tempo impostura e busca de sentido —, comenta o prazer estético das releituras, defende a literatura que resiste à explicação excessiva e exalta autores que criam leitores, como Borges e Hilda Hilst. Fala também da alegria inesperada que brota no encontro com um bom trecho de livro, da angústia produtiva que permeia seus processos e da importância de manter viva, mesmo em tempos sombrios, a possibilidade de humanidade na ficção.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Acho que ainda estou “me dando conta” disso! Afinal, é uma escolha e também uma luta diária — luta contra as palavras, contra os fantasmas, contra as angústias. No meu novo romance, Uma impostora em Harvard (a ser publicado em breve pela AltaBooks), falo justamente sobre esse sentimento de impostor e de imposturas. Um escritor é, por definição, um impostor — e estar consciente disso liberta a ficção, mas também provoca insegurança.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Gosto de reler e sempre fico triste quando acabo de ler um livro muito bom.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Sempre umas gotinhas de Borges e Rosa, e ultimamente umas doses nada homeopáticas de David Foster Wallace.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Terra e paz, Yehuda Amichai.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Angústia, alegria e tristeza controladas. Não podem ser exageradas. Não podem deixar de existir.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Um pouco de calma e tesão.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando consigo escrever duas páginas pela manhã e “reescrevê-las” à tarde. E quando leio algum trecho ou livro bom.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
As muitas reescritas! Polir, lustrar, cortar.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A expectativa.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Os silêncios.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Thais Lancman é uma escritora inventiva e uma crítica literária sofisticada. Foi finalista do Prêmio Oceanos com Pessoas promíscuas de águas e pedras. Já Celso da Costa, matemático e vencedor do Prêmio LeYa, é autor de A arte de driblar destinos, obra da qual fiz a leitura crítica. Há, inclusive, uma entrevista interessante com ele aqui no Rascunho.

• Um livro imprescindível e um descartável.
A Bíblia. É um livro ao mesmo tempo imprescindível e descartável, dependendo do leitor. No ensaio O conto policial, Borges dizia que a grandiosidade de Edgar Allan Poe estava no fato de ele ter “criado” um leitor. Grandes escritores “criam” leitores. Borges também admirava a Bíblia, afirmava que não havia livro mais “fantástico”. Em outro texto, Uma vindicação da Cabala, ele comenta a diferença entre livros “canônicos” e “sagrados”. Como ficção, a Bíblia nos faz compreender aspectos profundos do mundo e das pessoas; já como não ficção…

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Explicar. Quando faço leituras críticas, percebo que sempre há aqueles que explicam demais, de forma excessivamente didática. Isso, no entanto, mata a literatura. Por outro lado, deixar o livro hermético também é um problema. É preciso encontrar a medida certa — o que é difícil e, muitas vezes, causa angústia.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Acho que nunca diria nunca.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Das “brochadas”. Virou o Brochadas (Rocco, 2015). É um livro sério, que fala sobre tabus, cheiros e histórias de escritores. É engraçado, mas causa desconforto.

• Quando a inspiração não vem…
Aí vou correr! Alguma coisa acontece quando estou correndo.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Na onda das minhas leituras, gostaria de um café com David Foster Wallace e com o Borges. O tema seria a questão da “ficção”.

• O que é um bom leitor?
Acredito que seja quem relê e a cada releitura aprende — e apreende — alguma coisa diferente.

• O que te dá medo?
De escrever algum texto/livro que não tenha nenhum sentido. Que eu não consiga perceber que está sem conexão, sem nexo, sem pé nem cabeça.

• O que te faz feliz?
Quando tenho o momento “ah-há” na leitura. Quando acontece um encontro e me conecto. Como diz o Foster Wallace em Um antídoto contra a solidão: “Tem um tipo de Ah-há! Alguém, pelo menos por um instante, sente alguma coisa ou vê alguma coisa como eu. Isso não acontece o tempo todo. São lampejos ou relances, mas isso me acontece de vez em quando. Eu me sinto não sozinho — intelectual, emocional e espiritualmente. Eu me sinto humano e não sozinho, e sinto que estou envolvido numa conversa profunda e significativa com outras consciências na ficção e na poesia, de uma maneira que outras artes não me oferecem”.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Tenho só dúvidas. O mundo me assusta, anda tão polarizado, todos têm tantas certezas.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que faça algum sentido. Que consiga expressar algo que penso e sinto. Que consiga alcançar os leitores.

• A literatura tem alguma obrigação?
Nenhuma. E todas!

• Qual o limite da ficção?
Cito novamente o Wallace: “Olha, cara, provavelmente todo mundo aqui ia concordar que estamos vivendo tempos ruins, e tempos estúpidos, mas será que a gente precisa de uma ficção que não faz mais do que dramatizar o quanto tudo é ruim e estúpido? Em tempos sombrios, a definição de boa arte parece que seria a arte que localiza e tenta ressuscitar aqueles elementos do que é humano e mágico, e que ainda sobrevivem e brilham apesar das trevas. A ficção realmente boa poderia ter a visão de mundo mais escura que quisesse, mas ela ia encontrar uma maneira de ao mesmo tempo retratar esse mundo de trevas e iluminar as possibilidades de se manter vivo e humano dentro dele”.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Aí depende muito das (boas ou más) intenções alienígenas. Se boas, eu o levaria a uma biblioteca. Se más, a Brasília.

• O que você espera da eternidade?
Nada. Angustiante e libertador. Lembrei-me de uma cena de Uma impostora em Harvard. Fui aluno de Nicolau Sevcenko e há um capítulo em sua homenagem. “Em 2001, o então professor da USP, que em 2009 se tornaria catedrático em Harvard, Nicolau Sevcenko foi inquirido por Antônio Abujamra (meu veterano na Maison du Brésil), em seu programa Provocações: ‘Além do suicídio, o que você nos aconselha?’ Nicolau, com a leveza de um sábio e a erudição humilde de um mestre, sorriu ‘Uau!’ e, após uma gargalhada nervosa, nos saudou com um propósito: ‘Eu espero que não. Espero, pelo contrário. Que (continuar) seja um grande gesto de amor à vida, de amor ao ser humano, de tentar lutar contra esses processos que colocam outros princípios e valores à frente do ser humano, à frente da natureza e à frente da nossa relação harmoniosa uns com os outros, como irmãos que somos da mesma espécie. Enfim, é para isso que nascemos, para sermos felizes e para vivermos em harmonia com a natureza’. Interrompido e provocado por Abujamra, ‘Isso é religioso?’, Nicolau continuou: ‘Não. Eu acho que isso é ético. Que isso é humano. Eu acho que isso é a inspiração que todos nós trazemos do berço.’”

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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