Com apenas 45 anos, Carlos Machado é um veterano da literatura curitibana. Há pelo menos duas décadas ele vem alternando entre a publicação periódica de narrativas longas (que chama de novelas) e breves, em livros como Poeira fria e o recente Flor de alumínio.
Com uma literatura calcada na autoficção, ele herdou de autores como Cristovão Tezza e Dalton Trevisan a visão mordaz, mas também generosa, sobre Curitiba e seus personagens.
Machado é daqueles autores que se alimenta, em grande parte, da própria literatura. Tem fama de ser um ótimo leitor. Mas em sua ficção a velha observação da vida comezinha é também um elemento fundamental.
E assim, entre a corrida de uma maratona, um café no centro de Curitiba e o olhar atento para as contradições da cidade fria, Carlos Machado constrói uma interessante trajetória de escritor e leitor.
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Antes de ser escritor, sou leitor. Os primeiros contatos com a ficção vieram com os livros da coleção Série Vagalume (uma influência geracional, por certo), depois disso, os caminhos ficaram expostos. Bastava escolher por qual porta atravessar: a Sociedade dos poetas mortos, “o beijo, amigo, é a véspera do escarro”, Jovem Werther e o Vampiro de Curitiba. Então, no dia em que terminei a leitura de Trapo, de Cristovão Tezza, caminhei até a praça Osório, em Curitiba, sentei-me em um banco e comecei a inventar as vidas de quem passava por mim.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Sempre anoto as ideias que vão aparecendo no meio do caminho. Quer sejam frases, palavras soltas, imagens, possíveis enredos, cores, espaços, cheiros etc. Porém, essas informações só se tornam parte da minha ficção, se ao escrever um texto, elas ressurgem sem que eu as procure, portanto, sem ler as anotações feitas. Ou seja, se elas não caem em minha memória, é porque não eram relevantes como eu havia imaginado.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Um de meus professores na faculdade, o escritor Paulo Venturelli, dizia: leiam de tudo, a todo momento, de bula de remédio à literatura russa. Bem, digamos, imprescindíveis são todas as leituras possíveis.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Esse livro não existe.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Passo muito tempo com as histórias, frases ou imagens circulando em minha cabeça, memória e tato. Nesse momento, as circunstâncias são muitas, e é isso que faz com que nasçam possibilidades. Porém, para transformar essas ideias em textos escritos, é necessário esperar por aquele momento em que não exista outra opção, a não ser escrever, nem que isso custe noites em claro, dores nas costas, e olhos cansados.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Qualquer momento em que se possa voltar para o silêncio, mesmo que esteja no meio de uma multidão ou sentado em um café ao lado de outras pessoas conversando pode ser uma circunstância ideal. Portanto, esse ideal é muito mais um espaço psicológico, do que físico.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
A criação literária tem diversos momentos, e todos têm importância no resultado. Entretanto, captar a percepção de uma experiência é fundamental. E quando essa (re)invenção da realidade acontece, por menor que seja, considero produtivo. Importante é ficar sempre atento e identificar a direção do vento.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Quando o narrador assume o controle do texto e dispensa o autor, joga-o de lado e o deixa como coadjuvante. Nesse ponto, sei que o conto ou a novela vão acontecer.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A sua imaginação. Pode parecer estranho, mas quando escrevemos, sempre pensamos no leitor ideal. Esse leitor, não existe necessariamente na vida real, mas se o escritor deixar, é ele quem impõe o que (e como) deve ser escrito.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
As pessoas que se esquecem que literatura se faz com livros e leitores.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Marcio Renato dos Santos.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: Cemitério de elefantes, de Dalton Trevisan. Descartável: O nome da rosa, de Umberto Eco.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Linguagem hermética, pomposa, cheia de nove horas… Mas o contrário também, o descuido, o marasmo, a falta de originalidade.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Caso houvesse assuntos que não entrassem em minha literatura, isso já seria um assunto. Portanto, não há limites.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
No quilômetro 41 da minha primeira maratona. O problema é que eu não me lembro qual foi a ideia…
• Quando a inspiração não vem…
A inspiração é um impulso que deve ser alimentado (é trabalho), e se assim o for, ela volta, mais cedo ou mais tarde.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Em junho de 1959, estive na casa de Boris Vian. Sentamos em uma das diversas mesas que ele mantinha no terraço de seu apartamento em Montmartre, exatamente em cima da boate Moulin Rouge, e tomamos um café crème com croissants. Como ainda era cedo, a cidade estava silenciosa, dessa forma, foi um convite para que ele puxasse seu trompete e mostrasse uma de suas canções de jazz. O barulho do instrumento e a empolgação com que ele tocou a melodia chamou a atenção de seu vizinho, Jacques Prévert, que se juntou a nós. Isso foi há poucos dias antes de sua morte, aos 39 anos de idade.
• O que é um bom leitor?
É aquele que não lê apenas com os olhos, mas entende as nuances que existem por trás de cada palavra, cada ideia. É preciso aceitar que as percepções são múltiplas e necessárias e, dessa forma, se deixar envolver por elas. Um bom leitor nunca termina a leitura de um livro da mesma forma que começou.
• O que te dá medo?
De ficar parado no mesmo lugar, como um punhado de poeira fria estacionada por cima dos móveis de uma casa. Importante é deixar alguém bater no sofá ou passar o espanador para que o pó se movimente, nem que depois caia no mesmo lugar. Será sempre diferente. Caso contrário, acaba.
• O que te faz feliz?
Poder sair do meu apartamento, dar voltas pelas ruas, subir em um ônibus, embarcar em um avião, caminhar por outras cidades, tomar um café, correr uma maratona, observar e inventar vidas e depois desse tempo, voltar para o mesmo lugar de onde saí, mas nunca o mesmo.
• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
A certeza de que apenas com dúvidas é que se pode escrever.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Quando um atleta está correndo uma maratona, existe um determinado momento — que varia de pessoa a pessoa — em que ele atinge “um muro”. De uma hora para outra, a energia fica extremamente escassa… Fazendo uma comparação com a escrita, quando atinjo esse muro, é que cheguei ao meu limite, usei praticamente toda a energia que tinha para escrever o texto. Mas é preciso seguir até cruzar a linha final (seja ela qual for).
• A literatura tem alguma obrigação?
Se a literatura tem uma obrigação, é a de não ter obrigação. A arte deve ser livre, sempre. O autor de ficção tem um leque infinito nas mãos, sem limites.
• Qual o limite da ficção?
A literatura nos permite e nos possibilita que olhemos para a imagem do outro lado do espelho, e que também possamos revelar os negativos preto e branco de uma fotografia. Assim, sentimos as cores, pensamos passarinhos, ficamos árvores (citando Manoel de barros), cheiramos o barulho, respiramos o silêncio.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Eu o levaria na esquina entre as ruas Ubaldino do Amaral e Amintas de Barros, no Alto da XV. Na casa do Vampiro de Curitiba.
• O que você espera da eternidade?
A eternidade pode me levar inteiro. Sem mais. Só não pode me tirar as lembranças, ainda que incertas. Nem que, para isso, eu tenha que ressonhar tudo outra vez. Pedra por pedra. Palavra por palavra. E não faria diferente.