Verdades e mentiras em torno de um Nobel (final)

Lúcio Graumann está morto e, mesmo assim, desperta a inveja necrófila do Brasil
01/02/2010

Era a época das marchas contra a guerra do Vietnã e pelos direitos civis, contra a discriminação racial e pró-Paz.

A palavra dançava acima dos cabelos longos, das cabeças na nuvem dos protestos clamando por mais Paz para a paz das “viagens” em comunidades de jovens sorrindo para tudo e para todos, e até para a polícia recebendo flores esmagadas por cassetetes e botas. Esse tempo agora está lá atrás, a cadeira de balanço de John Kennedy fora transformada em relíquia não só da falsa “Camelot” (na qual Nicolson trabalhou como jovem estagiário de cabelo à escovinha, prestes a penetrar no “rio perdido” do primeiro título do livro inacabado).

Com seus míopes olhos azuis, Nicolson faz um esforço para se lembrar de Lúcio como autor das “melhores paródias” daqueles que eram os autores da moda, os modelos pseudo-sofisticados que não eram mais que escritores da diluição-da-diluição (“Lúcio não parecia interessado, realmente, em literatura tanto quanto nas mulheres jovens e velhas, porque nem a Céspedes escapou do seu laço de gaútcho”). Carl deve ter sido o mais jovem punheteiro daquela turma de atormentados de revista. Alguém lhe pergunta: “De quem mais você se lembra, na Ledig?”. Resposta de Nicolson (empenhado em procurar a justa recordação de um míope sincero): “Lembro da visita de Günter Grass, que Lúcio achou um homem inesperadamente medíocre. Discutiram em alemão, e todos acharam — mesmo sem entender metade do que haviam dito — que Grass pareceu encurtar a visita, depois da briga verbal com o brasileiro sobre qualquer coisa a respeito de intrujice literária da nova literatura germânica falsamente dividida entre consciências culpadas e limpas”.

Ambos integram, agora, o corredor de bustos do Nobel, porém Grass está vivo, com seu bigode de açougueiro que fuma Shundroman, come os melhores linguados e produz os mais importantes romances chatos da alta literatura de altos e baixos. Graumann está morto, vive a glória póstuma e, mesmo assim, desperta a inveja necrófila do Brasil que gosta de cultivar só os defuntos bons ou bem comportados. Quando ele morreu… Mas, quem está vivo? Eis um mistério policial invertido (num prefácio inaproveitável, quem sabe, principalmente quando se trata de substituir, no Brasil, o texto confeccionado pelo novo Harold Bloom do pedaço, o jovem crítico Donald Jay Lederer, graummanófilo internacional recém-filiado à admiração do Nobel mais “azarão” dos últimos cinqüenta anos). Escrevo também para explicar coisas que eu não entendo. Mais: estou sendo pago — mesmo que não muito bem — para isso. E para dar a aparência (máxima possível) de verdade próxima de esclarecer o “enigma de Graumann” — como referem Rogério Pereira e Luís Pellanda, numa entrevista publicada no Rascunho de junho deste ano —, se é que existe esse enigma, esse mistério talvez de todas as vidas, banais e menos banais, como nos epílogos das novelas em que, após ficar esclarecida a intriga, torna-se impossível imaginar o que os personagens farão em seguida, depois que o esclarecimento pôs fim à falta de sentido mais estimulante do que as “explicações”…

O editor, aliás, incentivou-me da forma errada: “Diga quem foi Graumann”. “Tente deixar um retrato do homem”, foram as suas palavras de estímulo, e aqui estou enveredando pelos meus erros (o que é melhor do que enveredar pelos erros dos outros), e se torna tudo tão chato como em perdas e ganhos, um vazio de reflexões que inspiram ao suicídio só porque a vida é realmente isso: banalidade que se intensifica, antes de você deitar para submergir debaixo da branca vigília que nos aguarda do outro lado da ponte pênsil sobre um abismo, para usar das solenes frases próprias para o caso de um prêmio Nobel. (Mas não é minha: a frase solene em Casa dos casais, um dos livros de Lúcio que eu menos admiro, entre os primeiros).

É isso. Sou escritor, tradutor — eventualmente —, mas não sou crítico, dispenso a mim próprio de avaliações do inédito desde o ponto de vista talvez pretendido para este prefácio (o editor foi avisado sobre essa “deserção” crítica). Afinal, além de autor da tradução, estou aqui principalmente como escritor, para homenagear um colega e um homem com quem fui injusto (sem nunca deixar de admirar a sua obra) e que hoje goza dessa unanimidade nacional — um prêmio Nobel! — conferida pelo país inseguro que precisa da aprovação caipira do Oscar, do astronauta de carona e de todas as Copas do Mundo. Fora disso, parecemos desconfiar de que nossas orelhas estão sujas, vestimos a roupa errada para a cerimônia e, novamente, esquecemos onde enfiar o caroço da azeitona…

Aquela pergunta que remetia às rodas homéricas de fogueira, ele respondeu também de modo bastante peculiar. Está na entrevista publicada justamente na revista semanal que, pós Nobel, se especializou em pequenas “más-vontades” (vá lá o eufemismo) contra o premiado. Na primeira hora, seu editor de literatura considerou a láurea para o brasileiro “um prêmio de consolação para a língua”, e, em face da morte de Lúcio, “uma premiação praticamente póstuma”, para “um romancista que precisou ser apresentado ao Brasil, quando o Nobel de 2001 foi anunciado”. Não havia ali uma única linha de reconhecimento do legado — indiscutível — que esse escritor nos deixou: alguns romances “divergentes” e, digamos, essenciais não só para a nossa literatura, esse mistério. Graumann é um herdeiro da linhagem de Machado de Assis (o que a ABL, eu suponho, quis reconhecer ao criar a cadeira 41, póstuma, para o morto imortal), daquela família literária que o “bruxo” carioca inaugurou, maior do que ele mesmo. Machado tinha pelo menos dois contemporâneos para dialogar com ele: Raul Pompéia e Álvares de Azevedo, jovens autores complexos dos inícios de uma literatura que viria a perder o alinhamento não apenas “urbano”, em pouco tempo, achatada pelas “tradições” em formação no Sul e no Norte, isto é, do Nordeste, ímã forte que deslocou nossas melhores vozes para o compromisso imediato com o entorno das coisas, o fundo social e as crises políticas da pós-monarquia atraída para ser mais ou menos “moderna” (e, eventualmente, até “engajada”) do jeito que Machado não era, nem Euclides da Cunha, e nem mesmo, na outra ponta do tempo, João Cabral aceitava ser — autor do Severina de longo protesto de encomenda, malgré lui même —, assim como outros escritores da tal “sociedade em transformação” mencionada na vaga justificativa oficial do prêmio para alguém que dialogaria, sim, com o seu conterrâneo Dyonélio — o outro Machado da linhagem psicológica no verdadeiramente moderno romance brasileiro etc. —, além do seu xará Lúcio Cardoso, e mais Cornélio Penna e Clarice Lispector, sua amiga e admiradora. Já foi dito, e não custa repertir: Lúcio Graumann “correu por fora” do que podemos reconhecer no mínimo como um certo temperamento das nossas letras, embora não tanto quanto se possa pensar, quando o vinculam ao caráter “acrisolado” da literatura do Sul (com ênfase especial no universo gauchesco, que parece bastar-se a si mesmo). Sobre isso remeto ao artigo, a respeito do escritor santacruzense, que foi uma das últimas coisas escritas por Paulo Francis. Claro que o jornalista nunca imaginaria estar tratando de romances “nobelizados” alguns anos depois (o que talvez fosse colocar o velho Francis numa trilha de antipatia irrecuperável, no melhor do seu pior estilo). Pois o nosso iracundo diarista da corte, sempre reivindicando o direito à opinião própria, ali reconhece que o gaúcho já era, isto é, era já importante nacionalmente, e caminhava para alcançar notoriedade pelo menos “continental”, merecida por “um renovador da nossa ficção de sangue aguado” (sic).

O reconhecimento dessa notoriedade, por parte de PF, é importante para desfazer um pouco a impressão de prato feito que a Academia sueca, por algum motivo mais do que “misterioso”, teria servido no final de 2001, ao resolver conceder o prêmio literário mais cobiçado do planeta a um brasileiro despontando para a inveja nacional. De imediato, essa obra de um gaúcho “correndo por fora” era guindada ao panteão que visivelmente “irritou” o Brasil ciumento das glórias que ele não “prepara”, como uma espécie de torta caseira para patrícios & estrangeiros. Sob nossas bênçãos de sesmarias & igrejas, os últimos podem aprovar tapioca de queijo, a iguaria de manteiga derretida, de beiços lambuzados dos quitutes temperados pelas mãos de ouro das Gabrielas do amado São Jorge das telenovelas. Ao contrário do autor do Mar morto — um criador de mundos vivos na pura superfície —, Lúcio Graumann foi uma espécie de El Greco da sombra tenebrista sobre as palmeiras-anãs da nossa literatura, entre lagunas e lacunas do pântano psicológico que preferimos evitar. Quem gosta da casa assassinada? Quem tem medo dos fantasmas dos quartos fechados sobre as paredes caiadas do “país do futuro” que nunca começa ou que jamais acaba de começar? Somos a fina flor dos proto-fascismos dos Quaresmas e dos Quadernas travestidos de Cavaleiros da Pedra Furada do Reino do Faz de Conta que Temos Tróias de Taipas e Palácios Escondidos Debaixo de Lagoas Encantadas do Sertão. Somos, também, o minúsculo realismo de face para o espelho invertido dessas águas de março, o brasil da bíblia de prestes joão e carlos, cavaleiros da esperança sem as maiúsculas que não provam que “josé-de-alencar-é-mais- importante-do-que-james-joyce, segundo a cartilha vigente no Nordeste armorial.

A reação a Graumann foi bem dissecada por Fabrício Carpinejar (conterrâneo do autor de O grou na grua): “A coragem do autor e a aventura arriscada pelo deserto verbal terminaram vítimas da inveja. A ousadia formal agravava o ‘complexo de vira-lata’ de seus colegas, expressão de Nelson Rodrigues que significa uma ambição ao avesso, negativista, típica do brasileiro. Seus contemporâneos padeciam do medo de dar certo, não de dar errado, e ficavam conspirando e buscando provar a falsidade de pedigrees em testes de DNA. Em meio à concorrência canina, deixavam de consolidar trajetórias e atribuíam o eminente fracasso ao escasso espaço concedido pela mídia” (in As confissões de Lúcio, “Prefácio”, Editora Francis, São Paulo, 2006).

Ao lado de Jorge de Lima, o romancista Lúcio Graumann é o nosso metafísico “deslocado”, a boiar como magro cadáver que se recusa a afundar no raso. Nesse sentido, é meio-irmão de Augusto dos Anjos enquanto trabalha, quase um século depois, do outro lado do rio — vadeando a prosa e vencendo os demônios da mediocridade, novo Qorpo-Santo do Sul, em busca do rigor que vai pelo ralo do xangô que entra na Academia pela porta aberta ao maracatu da caricatura literária dos maribondos de fogo morto da nossa literatura de especiais de verão, regidos pela varinha de ouro global reduzindo tudo a mercados e nichos de mercado, nos relatórios dos talentos comprados a peso.

Graumann é o Mário Peixoto do nosso romance, o escritor da linha de sombra num mar sem limite que não termina nem desaguará, nunca, na pororoca vulgarizada de “minisséries” produzidas pelos núcleos de liquidificador de conteúdos batidos com banana, para produzirem vitamina em potes descartáveis. Graumann está na outra margem da questão da “abolição da cultura pela civilização” — conforme colocado, tão longe do trópico, por outro Günter (o inteligente Kunert), num dos auditórios apinhados da feira babilônica de Frankfurt: “Talvez a literatura tenha perdido o prestígio como mediadora de sentido, resultando sua casualidade da posição perdida. Porém, que sentido ela poderia mediar, que deficiência compensar, numa época em que a palavra transcendência nada mais é que um termo erudito?”.

Em tempo: para um tradutor, sei que mal mencionei o trabalho de versão do inédito de Graumann agora de volta para a língua em que foi pelo menos pensado, se não escrito. Existirá um original em português, ainda em perdido, deste livro descoberto como original em inglês (traduzido — ou revisto — por Alba de Céspedes?) — pergunto eu. Lúcio Graumann não escrevia, na língua de Shakespeare, tão à vontade quanto escrevia na língua de Goethe. (Não esqueçamos que foi Graumann o autor da tradução das suas obras lançadas na Alemanha pela Suhrkamp Verlag).

Alguém já chegou a aventar a hipótese de A intrusa na sombra ter sido escrito em português, depois em alemão (a primeira — ou segunda? — língua dos Graumann?) e, só então, traduzido para o inglês (e não pela Céspedes). Terá sido assim? Então, estamos diante de um terceiro leito para duas línguas abraçadas (o português e o alemão), antes de chegar a parceira não-cega, a língua para a qual Herman Melville traduziu poemas do caolho Camões?… A quem estamos ouvindo, então, quando aqui soa a voz recuada do que é “lido” — por sobre a leitura de “nível um”, digamos — no embutimento dos livros dentro de livros que, neste inédito (infelizmente inacabado), confere à técnica do palimpsesto um grau de assunto, numa maximização do interesse pelo que é “falso” e “verdadeiro” (?) no corpo dos romances construídos sobre o tapete da fabulação (que este autor tira de debaixo dos pés do leitor, continuamente?)…

Uma moça — uma “Corintha” disfarçada de quê? — finge ler, ouvir, escrever em substituição daquilo que um escritor cego (um Borges na verdadeira treva, avant-la-lettre?) não pode ler, no ar irrespirável de incertezas do livro do qual jamais saberemos qual teria sido o desfecho concebido pelo autor que já desapareceu debaixo da glória inútil a sete palmos da terra.

NOTA: A entrevista citada pelo autor foi publicada na edição 74 do Rascunho, de junho de 2006.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

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