Há um conto “romano” de Lúcio sobre a relação de um estudante brasiliano com uma jornalista italiana, “filha de um diplomata cubano”. Tudo indica que o relato é autobiográfico (o título é Fugue, e não Funghi — conforme já vi citado), embora a “jornalista” venha a morrer atropelada, ao se atirar na frente do pontual carro que o autor aluga com a moeda do convencionalismo, para por fim à angústia da perda do amante mais jovem etc. Alba talvez não fosse capaz de tais arroubos e, de qualquer modo, morreu em casa, de doenças da idade avançada. A narrativa curta não faz parte dos Contos reunidos, escolhidos pelo próprio Graumann. Contos à parte, Lúcio e a “escritora feminista” — conforme é sempre rotulada — iriam se rever na Ledig, uns dez anos depois (quando se mostrava mais nítida, talvez, a diferença de idades), e parece que houve, ali, um renascer das esperanças da jornalista-escritora, até tudo terminar apenas alguns meses depois do acidente com a vizinha “daltônica” — que possui um pequeno arquivo LG, no seu bem montado estúdio com vista para um parque onde há esquilos que comem ração das mãos dos passantes (todos se conhecem, todos são vizinhos, em Hudson, e todos amam os animais — que nunca apresentaram sintomas de qualquer doença gástrica).
É uma tarde encantadora, os pequenos animais, tímidos, estão em paz antes de chegarem ao pé da cerca (onde paramos, a fim de alimentar os bichos)… A conversa entrecortada dos nomes que ela havia dado aos esquilos, ali protegida por lentes escuras — embora eu pudesse ver que lhe agradara ver que também eu não nutria simpatia pela pessoa e pela obra de Alba de Céspedes, pois os óculos se voltaram, com reflexos do sol frio, para a surpresa daquela confissão de antipatia gratuita: “não gostei dos livros, nem da autora”.
“Nunca li nenhum, e acho que nunca vou ler” — ela fez vibrar a declaração gelada, depois olhou na direção da Ledig (a nova): “Sinto falta do prédio velho. Aconteceu tanta coisa ali…”
E, então, passou um dado que faz supor que Lúcio Graumann se encontrava já doente, nos EUA. Ele viveu, eu sei, mais vinte anos, ainda, até vir a falecer em Pernambuco, vítima da “doença do sangue” — para usar os termos lacônicos do comunicado oficial da morte que aquela estranha decifrou perfeitamente. Só não sabia que o seu “amigo” sequer chegara a receber o prêmio, na capital sueca (que ela trocava por Helsinque). Vivia fora do mundo, uma senhora ainda bonita, num bosque público, com os esquilos também públicos e bem alimentados por rações compradas pelos moradores de Hudson, NY. O Nobel é menos Nobel ali, na verdade ela só ficara sabendo que Graumann ganhara “um prêmio muito importante”, havia morrido logo depois e, bem, a vida prosseguia — como sempre.
Quando eu toquei a campainha do seu apartamento, e me identifiquei prontamente, falei de Lúcio Graumann, disse ao que viera, pedi para entrar (fazia frio), ela tinha os olhos de uma cega que custasse a lembrar das visões perdidas na adolescência. Esse tema — o da adolescência — me leva a dizer algo em defesa de Lúcio, no seu relacionamento com a “daltônica”. Quando ele a conheceu, ela não era nenhuma garota balthusiana de pernas distraidamente pousadas sobre o braço de algum sofá necessitando de conserto, mas uma jovem freqüentadora de salas de música, leitora dos livros recomendados pela crítica e pintora nas horas vagas. Aqui, não pude imaginar nem bonequinha de seda com o sexo louro se anunciando sob o tecido grosso da calcinha de lã incapaz de emocionar um Capote. Fazia frio, aliás, mas não tanto assim, para o caso da lã íntima (eu sei que eu tomara duas doses a mais), e ela não reclamava de frio, naquela hora e na recordação de si mesma, caída, desacordada, debaixo do sinal com o aviso para dirigir devagar, por causa dos esquilos e das crianças; de maneira que foi levada para dentro da Ledig, apertada contra as cores confundidas da camisa de Lúcio (o que sua memória para cores registrara bem nítido).
“Eu escrevi sobre ele, não quero publicar nada; apenas escrevi” — C. repetiu, quase nervosa, colocando os óculos por algum tique ou hábito, antes do esforço para sorrir e atenuar o tom enfático da frase. Seria, pleno, talvez o mesmo sorriso da moça acordando, trinta anos atrás, com o aroma do café forte que Graumann sabia fazer como um turco.
— “Nem tudo é para virar literatura”.
Não me mostrou nada do que escreveu, nem que fosse apenas para que eu folheasse, ali, no escritório em meia penumbra, a mecha do cabelo grisalho caída sobre a testa (parecia com as fotos de Susan Sontag na meia-idade). Achei-a atraente, naquele momento, e imaginei que Graumann a achasse ainda mais sedutora, há mais de vinte anos. Os anos passam mais cruelmente para as mulheres, de um modo geral — mesmo que elas se cuidem daquele jeito que deixa seus rostos (principalmente seus rostos) com o brilho acetinado do esforço para deter a perda de frescor da pele, a hora de esplendor, breve, dela, como a do sol na relva. E cotovelos são terríveis traidores da idade do corpo feminino sujeito ao tempo tanto quanto qualquer ser constituído de células na natureza na qual tudo se perde e desaparece.
Ela me perguntou onde está sepultado o escritor que foi seu “amigo” numa época que se afasta demais para manter a realidade, para essa “Corintha” de Hudson, que sabe mais do que quer admitir, sobre a “intrusa” do livro inacabado do prêmio Nobel quase póstumo que veio, tarde, para o Brasil desconcertado com a falta da foto do brasileiro ao lado da realeza sueca, no mesmo país onde o goleiro Gilmar levantou a taça depois derretida em alguma oficina de subúrbio do Rio de Janeiro. “Não, ele não está enterrado no Rio” (eu falei no Rio?), ela finge não saber?
Eu devo responder, fingindo que não sei que ela finge?…
Se é assim, vamos fingir: ele está sepultado em Santa Cruz do Sul, fizeram um mausoléu só para os ossos do magro Lúcio Graumann, há uma placa de bronze com o seu perfil fundido (cuidado com a palavra) em relevo, grama mal cuidada e uma cerca baixa em torno da construção que lembra um pequeno templo meio pompeiano, pomposo no pampa. Graumann gostaria da aliteração de pompons crepitando como uma daquelas fogueiras do capítulo final de A senda da surata, quando Severo Marchetti morre no “campo frio de abril” etc.
Ela quis localizar Santa Cruz num mapa-múndi da decoração do seu estúdio de pintora (aposentada, segundo eu entendi). Demoramos um bom tempo até achar a cidade no sul do país, naquela porção de vazios que eu lhe disse que era como o Texas, como a Pahandle na qual haviam se internado seus avós poloneses (havia fotos deles, homens de barbas e mulheres sérias, olhando para a lente como se fossem ser condenados ao futuro pelo rio fixo do tempo dentro da máquina).
“O país é isso tudo?” — perguntou, admirada, uma unha rascante indo do Oiapoque ao Chuí no mapa onde talvez esperasse ler Buenos Aires (ou Rio), como a capital do Brasil de Carmen Miranda, samba e músicos de camisas listradas. Nessa terra do sem fim, nascera um escritor distante do folclore das Gabrielas de cravo e canela tanto quanto dos negrinhos do pastoreio da outra ponta imersa em névoas de pampas identificados mais com a Argentina de Borges (o amigo que lhe dissera: “tu escreves na contramão do temperamento do teu país”).
Assinalei o lugar de Santa Cruz para ela — um ponto de “i” numa zona ocre de poucos nomes de cidades (o mapa não era novo), ela pronunciou “Santa Cruz”, eu traduzi, ela disse que sabia o que significava, fez o sinal cristão, entendi que era católica como são muitos poloneses (só então reparei nos dois ícones que dominavam a parede oposta, relíquias douradas de prata sobre madeira pintada: a Virgem da Ternura e a representação do véu da Verônica, a face de Cristo impressa a suor e sangue, com inscrições em ciríaco emoldurando a pintura bem conservada). Havia a foto ampliada de uma mulher, especialmente iluminada, na parede à nossa frente. Na hora, a retratada me pareceu familiar, com os olhos claros olhando para a câmera que fixara a sua expressão intensa. Tempos depois, eu vi uma foto de Anna Akhmátova que me esclareceu sobre quem era a pessoa daquela fotografia ampliada e posta, com todas as honras, numa parede daquela casa americana distante da Rússia como de Santa Cruz do Sul.
Fiquei esperando que ela terminasse o que me pareceu uma oração murmurada para os ermos gráficos do mapa, talvez de olhos fechados debaixo dos óculos que, mais do que envelhecida, tornavam a “daltônica” mais misteriosa, naquela penumbra. Quantos anos teria?
Terminada a curta reza, C. pediu que eu indicasse, de novo, a cidade de Santa Cruz no borrão do Rio Grande do Sul. Dessa vez, pegou uma caneta para marcar o lugar com um minúsculo ponto vermelho (não muito fácil de localizar, depois, no globo colorido), e vi que enxugava uma lágrima debaixo das lentes. Apressei-me em dar por terminada a “entrevista” (que nada — ou quase nada — revelara da amizade da moça de vinte e poucos anos com o Lúcio quarentão da Ledig). Porque eu tinha a impressão de que aquilo não era inteiramente sincero, e estava sendo feito para causar uma determinada impressão num completo estranho?
“Corintha” havia sido composta com traços de C. fresca como uma maçã numa caixa de pinho atapetada de finos papéis transparentes na cor roxa das lembranças que vão morrer, com o tempo?
O que ela não quisera me contar? A entrevista estava terminada — seu olhar, seus ombros, suas mãos me diziam antes mesmo de oferecer um toque mole, na direita, em despedida frouxa. Não veio me acompanhar até a porta, e eu mesmo a encostei, com cuidado, ao sair sem pressa, para a visão do bosque de esquilos no fundo da rua iluminada pelo frio sol (que devo chamar, uma vez mais, de “dourado”?). Sinta-se no meu lugar nada especial: a tarde americana declina sob o ruído do tráfego e do riso de adolescentes de patins que deslizam para cair adiante, debaixo da sombra de algumas árvores debruçando-se sobre a via de ciclistas menos respeitada do que se esperaria em Hudson, tranqüila quase como um condado.
Você olha em frente, desviado da calçada que seguia para o ponto de ônibus limpo, sem pichações, e vai se internando no parque, entre troncos de sólidos carvalhos, no país que não é o seu (e é diferente, para bem e para mal), como Lúcio o percebe à sua maneira, em A rua dos anjos de vidro — oposto ao lado mexicano do livro (que Octavio Paz disse que poderia ter sido escrito “por um dos trânsfugas bem-sucedidos da fronteira atravessada de madrugada”). Você continua comigo? Então nos harmonizemos sobre o passeio bem cuidado, sabendo que Graumann pisou em folhas possivelmente iguais, amareladas até cair das árvores bem podadas. Na vinda, C. me dissera que ela e Lúcio cortavam caminho por aqui, ela “para casa”, ele para a Ledig, ambos de braços dados. Então, esse era o caminho da Ledig, no espaço e no tempo que é uma marcha para frente detida somente pelas lembranças, nossas e dos outros, no cerne da memória própria e adquirida (que não tem uma “direção”, como o tempo tem — ou parece ter), ora, “o tempo é justo isso: uma direção aparente” — conforme diz Severo, em A senda da surata —, você avança, e há ramagens baixas que fazem inclinar-se a pessoa que adentra um bosque domesticado, cheio de recipientes do lixo produzido pelos passantes e pelos que não se agacham para apanhar a comida de esquilo que caiu do saco, é isso mesmo, uma vida normal na parte mais amena do Estado de Nova Iorque… e não a crispação do visitante que não se sente em casa, mas está pensando nela, está mais longe, calculando a velocidade da luz de estrelas mortas que nos chegam como os versos de Homero, vindos das fogueiras acesas até as cinzas deste prefácio que se desequilibra e, por isso mesmo, pode se tornar inadequado, virar posfácio ou mesmo nem ser aceito, no precário equilíbrio das desimportâncias — que foi o quisemos surpreender, caro editor (como quando se avista uma mulher de tranças a bater e esticar um tapete, numa ruazinha lateral de Könya, a qual jamais iremos rever, tudo isso num átimo de certeza que não temos mais sobre nada e sobre tudo que está por um fio) e você não percebe, na América, na Turquia, no Brasil ou na Patagônia do romance falhado (o Ferragante), “um caso de imitação involuntária de García Márquez” (by Alba), Lúcio dizia: “minha querida, literatura só verdadeiramente narra quando nada está acontecendo” — e ela não entendia. Alba escrevia apenas sobre os “momentos intensos” e abandonava os momentos abandonados (“porque a melhor literatura consciente, cara, não passa de um artifício incompleto”), Graumann sorria e resolvia debater coisas assim no “intercâmbio” de escritores, quando a Ledig House não era a casa de hoje, de jamaicanos, indianos, paquistaneses e sul-americanos escrevendo livros de baixa temperatura artística, histórias da periferia das grandes cidades modernas e pequenos contos elípticos sobre velhos aposentados. “Não quero ler nada sobre a dor de dente de um bancário traído pela namorada, no estilo sub-Woody Dalton Allen Trevisan” — Lúcio escreveu no Ofício (que é uma compilação das notas da Ledig). No tempo de Graumann e Alba, estava lá também o jovem Carl Nicolson preparando o primeiro de uma série de esboços do Calypso (que talvez nunca avançou muito além, Nicolson sendo — na minha opinião — uma daquelas reputações que se estabelecem por “misteriosa” boa vontade de alguns críticos bem situados num certo e dado momento, quando então vira moda cultuar um nome como oposição a nada exatamente, numa espécie de protesto contra nada de muito preciso — exceto o tédio que, às vezes, produz mais tédio acrescido de equívoco).