Uma vida em superstição

Na misantropia, o “eu” podia se tornar, sim, uma espécie de superstição
Arthur Rimbaud, autor de “Um tempo no inferno & Iluminações”
01/09/2013

Na misantropia, o “eu” podia se tornar, sim, uma espécie de superstição.

No seu caso, certo seria dizer que se transformara numa superstição não das grandes, não das maiúsculas “Superstições” (incluindo a vida — ela própria “uma forma de”, quando acontecia… o que havia acontecido).

Era importante explicitar?

Não, não era importante. E “um homem de bem não se explica” (havia isso, segundo o samurai da sombra, cavaleiro andante das gravuras de neblina de Hiroshige prestes a rasgar horizontalmente a barriga não muito cheia).

As suas eram as do varejo de superstições fora da magia das ilhas da corrente que o “Selvagem” fora exorcizar, como herdeiro de sangue inca ansiando pelas mentes vermelhas dos polinésios, nas Marquesas de mentes tão vermelhas quanto azuis, verdes e amarelas como os girassóis ensandecidos do “louco” santo de Arles (uma vítima do Paul de antes das cores básicas resumindo, ao máximo — ou ao mínimo? —, a quase automática escrita pintada nas paredes da sua cabeça).

Admirar o intimorato Gauguin jamais teria sido o bastante, é claro, ele sabia bem que não (principalmente no caso de admirações hesitantes na hora H).

Bem, não mais importava, também, e estava tudo recuado, agora, como estaria o passado de civilizações, extremas e inexplicáveis, dormindo no fundo da Via Láctea, por trás do tempo que mal contamos e do espaço aterrorizante na escuridão do nosso pequeno sistema sustentado por (ilegível)…

…porque a vida não passava “a mão na cabeça de ninguém”. E, avançada, já longa nos anos, tornava-se uma porta fechada sem explicação, um sarcófago sem decifração — descoberto em túmulos incompreensíveis de antigas cidades dos planetas em dispersão.

Não gostaria de explicar essa frase. Não gostaria de explicar nada, aliás. E um gesto de arrependimento não seria capaz de “mudar o passado”.

Wilde acreditava no contrário (ou dizia acreditar), mas nunca se poderia dizer no que OW realmente acreditava, num tempo em que era regra a explicação — de Frazer a Freud. Talvez o trêfego Oscar afinal tivesse acreditado na própria frase, na solidão do cárcere que o tornara “humano” e quase silencioso, ao rumar para a espuma do nada. Saíra da prisão com uma sacola suja que, quem sabe, significava uma ressurreição ou algo como um simples pacto de silêncio consigo mesmo e sobre o qual pouco se sabe.

Par superstition, j’ai perdu ma vie…
Rimbaud dissera outra coisa, mas cabia refazer a frase do poeta que tivera a coragem de se perder — mais por recusa do que por delicadeza no interior de uma personalidade em choque com a França burguesa da província e da capital, sim, porque Paris fora uma das suas superstições (falava de si mesmo, e não do Jean-Nicolas Arthur emigrado para a África interior que era horror, horror e horror).

Porém, havia aprendido — não ele, mas Rimbaud: o horror se cura por mais horror.

Era tarde, muito tarde — repetia o Corvo transformado em papagaio.

Sempre seria tarde, seis décadas depois, ao ler a frase de Hannah Arendt (devidamente anotada nos diários recheados de frases): “Progresso e Ruína são duas faces da mesma medalha, e ambos resultam da superstição, não da fé”.

A superstição das coisas ditas por outros. A literatura descoberta via terceiros. E uma mistura estranha de inércia e vontade, girando no fundo da vida que poderia ter sido outra, afirmada contra egoísmo e superstições mordendo a própria cauda.

“Pois era uma roda!” — exclamou o rato do desenho animado da fé monótona em nada que fosse real, realmente real (tautologia da vida afastada, recuada, separada da realidade de “violência e paixão”). Porque também as palavras tinham sido como moinhos de pás incansáveis derramando água sobre água que a chuva confundia e, no final, lavaria do rosto sem lágrimas de lamentação da carne.

Terminava tudo assim, apenas como uma prolongação das dúvidas ao pé da escada? Mais uma vez, soava literário demais, na sua voz solene entoando eruditas falsificações para ouvidos desavisados da vida de egoísmo e enganos falsificados em diversas direções, conscientemente ou não. Não poderia se enganar, contudo, até a derradeira hora.

Simplesmente era possível olhar em torno, depois do entardecer (sempre rápido no trópico) e perceber, desde já, o equívoco final que restaria nas naves superlotadas de sombras dos tais sonhos ermos daqueles dois versos do primeiro livro, que certamente jamais saberia se teriam sido escritos, mesmo, por “John Howard”…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho