Uma vida em egoísmo

Agora, ele defrontava o vasto nada — no pequeno escritório
01/08/2013

Agora, ele defrontava o vasto nada — no pequeno escritório.

Às vezes, diante da secretária que não compreendia nada (e isso era bom), sabia ser solícita, é claro, tratava-o com um “Seu” de subúrbio (o que era melhor do que ser tratado de “Doutor” ou simplesmente B.)…

O filme Violência e paixão — um dos últimos de Visconti — em parte poderia ser uma descrição também da sua vida. Em parte. O personagem central, vivido por um Burt Lancaster que o grande diretor italiano havia humanizado até “a lágrima na chuva”, parecia ter sido, a vida toda, apenas um tímido, um reservado e um erudito.

Ele, não. Havia sido um pouco tímido, sim, passava por erudito (o que sabia que não era, por trás de todas as longas frases, digressões e interpolações que as pessoas já não aceitavam bem), mas talvez não fosse um egoísta entre frios mármores, conforme quase provava não ser, no final, naquele dramático final de confusão da vida — essa “confusão” que ele, ali, no pequeno escritório diante da secretária suburbana, tanto temera, numa existência de egoísmo que agora estava chegando ao fim.

A vida — queria dizer —, não o egoísmo.

Seu egoísmo era um velho e querido cão aos seus pés (os pés que haviam pisado forte com sapatos de bom couro e agora estavam metidos em chinelos de ancião).

Sentia-se um “ancião”? Não. Não se sentia um ancião com chinelos mordidos por um animal aos seus pés de velho cão, o cão do livro do poeta galês Dylan Thomas, Retrato do artista quando jovem cão, que era o título de um romance de James Joyce com apenas a palavra “cão” acrescentada, talvez por ironia ou por necessidade de precisão (além de expressar admiração)…

“Ão, ão, ão.” Tantos ãos das palavras nas quais havia confiado (com as palavras não fora desconfiado, porém temeroso e respeitoso), as palavras que auxiliavam, ou pareciam auxiliar na busca da verdade — a verdade que, com o tempo, é aquilo que “mais se contradiz”, segundo o Durrell que o enganara com o truque de um quarteto de milhares de palavras agora esquecidas, numa Alexandria meio pintada num papelão que se desfizera com as tais “lágrimas na chuva” da imagem que o obsedava, no pequeno escritório diante do vasto nada com a secretária cuja suburbanice também era nada, porque ele — sim, ele — não sabia bem o que era um subúrbio, uma confusão de garagens e supermercados na noite de chuva na qual seria escorraçado como um cão molhado rente à porta fechada: a porta (escrito na) do seu egoísmo cansado de confiar nas palavras antes mesmo de confiar nas tintas que sujavam as mãos, as mãos que custava acreditar serem as suas mãos sobre a garganta do cachorro imaginário tremendo de frio como os cisnes do pátio kitsch cujos visitantes eram recebidos pelo egoísmo das frases aparentemente gentis, às vezes, de recepção e repetição, na máquina emperrada da vida que, agora, afinal dava dois passos para o lago raso do nada vasto como uma piscina vazia na tarde.

Estava assustado. Pela segunda (ou terceira?) vez, estava assustado como Jim se assustara no fundo do Patusan penetrado por um pirata lançando a frase de escuridão na sua direção (“ão, ão”), hã?: “Eu lhe conheço”…

Não, aquele sujeito, o Brown, certamente não o conhecia, mas Jim fora alcançado no cerne — no obscuro centro, melhor dizendo — de alguma falsidade que agora era também sua, sentindo-a próxima como um perdigueiro apertado contra as pernas lentas que gostariam de chutá-lo por conforto e egoísmo de quem havia ficado imóvel na mesma vida durante tempo demais, esperando que nunca chegasse a ser tarde para abrir um guarda-sol vermelho numa ilha que não fosse de solidão e superstição.

Quantos “nãos”? Dissera não ao destino aberto na juventude. Dissera não ao não — e contraditoriamente viera a afirmar uma vida baseada na negativa da expansão para fora de si mesmo, longe de fábricas & escritórios que alimentavam as mulheres ainda mais egoístas do seu egoísmo impermeável à arte, no final das contas dos cães cujos retratos estavam nas jovens paredes do cardeal inquisidor que esquecera a vida lá fora e todas as coisas que haviam chegado, violentamente ainda em tempo, para o esteta da paixão viscontiana narrada quase na primeira pessoa, embora Luchino houvesse amado a vida, supõe-se, do modo mais generosamente aberto para o outro, lançando as pontes que ele, ali, nunca havia lançado sobre o Capibaribe próximo de um Caronte espreitando pela porta do pequeno escritório sem que secretárias (suburbanas ou não) sequer desconfiassem daquele olhar de barqueiro para dentro da noite em plena manhã.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho