Um livro, um desenho e uma tradução

Um livro de Elizabeth Bishop com uma estranha ilustração feita pela autora
A poeta Elizabeth Bishop
27/11/2015

Em 1969, a célebre casa editora nova-iorquina Farrar, Straus and Giroux lançou a — logo — considerada “edição canônica” dos versos de uma discípula de Marianne Moore (a grande influência sobre João Cabral, junto com o francês Paul Valéry), aquela jovem poeta educada em Vassar como uma moça tímida de alta potência para transfigurar as coisas muito para além das lições da mestra.

É claro que estamos nos referindo ao “planeta” chamado Elizabeth Bishop — planeta feito de surpresa, intimidade, fogo, chuva e pedra e mais alguma coisa que resiste a identificações prosaicas como estas. The complete poems a tornou, quase de imediato, uma laureada do National Book Award for Poetry e reforçou, no último ano da década de 1960, a marcha da mulher, agora madura, rumo ao topo da moderna poesia de língua inglesa (com fatura “made in USA”).

Apesar de que a Bishop nunca ajudou muito a si mesma, na “igreja” literária (que também tem seus ritos nos EEUU). Ela era secreta e preguiçosa, um pouco lenta e assustada com textos, obrigações, verões, invernos, coisas regulares e coisas irregulares. Ser editor dela devia ser um pequeno inferno. Não ser seu editor, tornou-se um grande azar — quando saíram os 5.500 exemplares de 1969, hoje raros no mercado de primeiras edições bem cuidadas, com os poemas completos até aquela data atribulada na vida da poeta.

É um belo e sólido livro esse The complete poems que está à minha frente, com sobrecapa protegida por plástico mylar no exemplar bem conservado e, ainda por cima, extremamente valorizado por duas absolutas preciosidades da moça de Vassar que viria viver alguns anos aqui no Brasil (no Rio e em Ouro Preto, ao lado da legendária carioca Lotta de Macedo Soares). Primeiro, traz uma carinhosa dedicatória de Elizabeth para Flávio de Macedo Soares — sobrinho de Lotta, o único parente dela que decidiu ficar ao lado da escritora, nas dificuldades com a família Macedo Soares (pós-morte da ardente companheira), e, segundo, um desenho que, eventualmente, promoveria este exemplar a candidato a um mais que honroso título: o de segundo livro, até agora conhecido, com o acréscimo dos traços da também aquarelista Elizabeth Bishop diretamente nas páginas de uma obra literária sua.

Ambos à caneta, a tinta da dedicatória não é a mesma do desenho que talvez pudesse até refletir o negro estado de espírito que a poeta vivia, naquele momento atribulado, depois da morte da criadora do Parque do Flamengo, quando a mulher discreta (na poeta tão forte) vai encarando o fim dos seus laços com o Brasil, prenunciados até mesmo no estado mais desgastado da sua relação com Lotta (a partir de uma visita de Elizabeth aos Estados Unidos, para palestras nas quais se viu inclusive assediada por uma admiradora americana bem mais jovem, etc.).

Terá vindo da fina caneta de EB esse “monstrinho” tracejado em linhas de inconformismo e angústia tremidas como quisesse dizer (ao “sobrinho” postiço): Flávio, meu querido, eu agora estou me sentindo assim…

Universe, vast universe,
if I had been named Eugene
that would not be what I mean
but it would go into verse
faster,
Universe, vast universe,
my heart is vaster.

Apesar de que a Bishop nunca ajudou muito a si mesma, na “igreja” literária (que também tem seus ritos nos EEUU). Ela era secreta e preguiçosa, um pouco lenta e assustada com textos, obrigações, verões, invernos, coisas regulares e coisas irregulares.

Esses versos — traduzidos da língua portuguesa — não são de Elizabeth, mas do poeta Carlos Drummond de Andrade, na tradução do Poema de sete faces que aparece em The Complete Poems, numa espécie de apêndice (“translations from the portuguese”), exatamente nas páginas 161-162, sendo essa estrofe de “Seven-sided poem” correspondentes aos famosos versos finais:

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não conhecia tradução — e precisei encontrar o exemplar com a dedicatória ao então jovem Flávio, para ficar mais intrigado ainda do que com o estranho desenho.

Como uma mestra (mesmo preguiçosa) da língua inglesa em torções surpreendentes, conseguiu tornar tão sem graça os versos rítmicos — e absolutamente humorados — de Carlos? Essa questão nos coloca mais uma vez diante da (eterna) dificuldade de traduzir determinadas intenções logradas pelo uso de uma língua em face de outra que, na “transportação”, claudica (ou não claudica) dependendo das equivalências de som e de sentido, de significado e de musicalidade carregada de reforço of sense.

Obviamente, o final do poema de CDA se atrofiou nessa versão despida de qualquer faísca do auto derrisório sentimento que o poema carrega, no final, em português tortuoso, latino, herdeiro de soldados e de graffiti e distância e névoas dos povos latinos com cruzamentos celtiberos. Anglo-saxonicamente, a estrofe se torna uma pequena catástrofe digna do monstrinho misterioso traçado, na primeira página, pela caneta misteriosa que ali deixou firmada uma coisa tão feinha quanto o “Seven-sided poem” de Elizabeth Bishop. Mas o livro vale, é claro, muito mais pelos poemas da autora — e, na dúvida sobre o desenho, pela dedicatória-autógrafo datada de “Casa Mariana, Ouro Preto, march 13, 1970”.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho