Um caminho de conhecimento

O primeiro poema da humanidade — A epopeia de Gilgamesh — é uma coleta de “mitos de fundação”, mas também está na raiz daqueles périplos iniciáticos
02/09/2014

O primeiro poema da humanidade — A epopeia de Gilgamesh — é uma coleta de “mitos de fundação”, mas também está na raiz daqueles périplos iniciáticos, daquelas viagens que são a Busca no interior de cada um, em deslocação para “fora”, rumo ao centro da terra do eu, conforme é a saga vivida pelo herói antigo e por seu Sancho Pança sumeriano, no “País da Primeira Vez”.

E isso prosseguiu para além da idade do bronze, fornecendo o modelo das novelas da Cavalaria que, bem analisadas, conservaram as lições do remoto mundo antigo, mesmo nos termos da cristandade. Foram torções da tradição milenar, à medida que a cultura avançava até o que possuía um completo conteúdo sagrado, naquele contexto arcaico, ir se dissolvendo através das idades. Gestas medievais, a Divina comédia, o Pilgrims progress de John Bunyan, o Livro Quinto do Pantagruel, de Rabelais… e, já meio irreconhecível, também na Viagem aos estados da lua e do sol, de Cyrano de Bergerac, e até no Wilhelm meister, de Goethe — todos conectados com o significado primordial até o ponto curioso da narrativa “científica” na qual se traveste o Viagem ao centro da terra, de Jules Verne.

No caso desse livro, temos uma iniciação disfarçada (conscientemente ou não) sob a baixa forma de um romance de aventuras “de antecipação” que o tempo ainda não desbotou, porque todos os meandros do tema — e mais a rede das suas articulações — estão presentes nessa novela infantojuvenil que é uma das criações vernianas mais populares entre os brasileiros que cresceram sob o fascínio do tio “Júlio”.

Primeiro, encontremos na Viagem a Dama das gestas, as quais se tornam protegidas dos cavaleiros na sua busca dominada pelo Eterno Feminino talvez até como uma encarnação sobrevivente do mito da Grande-Mãe. Na obra de JV, ela é a linda Graübein que Axel (o cavaleiro) encontra no começo e no fim da aventura, prêmio a ser conferido ao herói como recompensa pela coragem e audácia empregadas no mundo subterrâneo (que é o mundo de Perséfone, não o esqueçamos).

No contexto das sagas, a mulher é uma entidade primeiramente inatingível (embora muitas vezes em perigo, por paradoxal que pareça), e que se posiciona, no começo e no fim das narrativas, como importantíssimo estímulo e incentivo, porém sem tomar parte nelas — enquanto aguarda que o herói feche o seu périplo, reencontrando-o no mesmo lugar do início. Claro, nos termos das viagens iniciáticas tradicionais não há lugar possível, para a Dama, na aventura em si; e ela só pode aparecer no prólogo e no epílogo, pois, desse modo, a narrativa recupera seu sentido mais puro e mais alto, e a “iniciação” se realiza num meio totalmente masculino (um pouco como no ambiente do western — que é a saga medieval transportada para o moderno ambiente da conquista americana do Oeste).

Axel inicia a grande viagem contra a sua vontade, e essa é uma condição conhecida na iniciação dos cavaleiros errantes inscritos na Ordem apesar de si mesmos, tateantes no escuro. Apesar disso, ele é levado pelo tio — o professor Lidenbrok —, que, por sua vez, se sente guiado pelo predecessor misterioso, Arne Saknussen. Este é quem faz as vezes de guia da “iniciação”, e, assim, a trupe do professor irá seguir as runas gravadas, com a ponta do punhal, no mundo subterrâneo penetrado pelo desbravador Saknussen (Caronte a guiar para dentro da sombra infernal).

O sobrinho de Lidenbrok representa, nas suas hesitações e transformações, o metal pobre — o personagem burguês no lugar onde havia o impenitente, nas sagas medievais —, o qual precisa ser temperado no fogo da terra (o vulcão), e também lavado e endurecido na água do mar interior subterrâneo. Ao final da aventura, ele estará para sempre modificado, criatura maleável e sem um verdadeiro perfil (ou consistência interna, no mar vago da personalidade), e que retornará da viagem para o Centro com seu próprio Rosto, isto é, com o seu ser verdadeiro, afinal conquistado. A identificação do mundo subterrâneo com os meandros da interioridade é, pois, bem mais antiga do que se pensa — e não é nada para se descartar até mesmo um modelo mais direto, para Verne, representado por um livro célebre — Canto da mina, atribuído a um discípulo de Paracelso, que o célebre escritor francês cita numa carta para seu editor (Hetzel). Nele, um postulante da sabedoria penetra nos corredores da tal “mina” exatamente como nas etapas de um caminho de conhecimento.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho