Sobre internet

(ou nunca-jamais terei um verborrágico blog, Caetano)
Ilustração: Bruno Schier
01/06/2012

Tenho sido praticamente obrigado, em quase todas as entrevistas que me solicitam, a responder perguntas sobre a “literatura na internet”, essa nova fronteira (já velha, a esta altura?) que pode ter expandido a limitação gutenberguiana do papel impresso ou, então, centrifugamente diluído a força da antiquíssima comunicação por palavras, como uma torneira permanentemente aberta pode ser capaz de esvaziar a caixa d’água de um prédio alto do tipo “balança mas não cai”.

A discussão sobre o alcance e também a qualidade dos textos (de qualquer gênero) colocados na web tornou-se igualmente fatal nas “mesas” palradoras de bienais e outros eventos ligados ao resistente objeto Livro, mesas que supostamente pretendem pôr em discussão a função, o destino e a natureza da produção literária trazida para o meio virtual basicamente por iniciativa de pessoas que se pretendem poetas sem ligação com a tradição do verso (e, freqüentemente, sem talento suficiente para saber dialogar/romper com essa “tradição” rala, cá em Pindorama), ou que se improvisam em críticos geralmente a partir do simples gosto próprio (partindo, então, para o disseminado “achismo” das opiniões subjetivas deitadas na rede) e, mesmo, de outros que se apresentam como contistas e/ou romancistas de obras inéditas das mais variadas tendências (todas um tanto conservadoras, talvez?) e “zero-comentários” em blogs que terminam sempre abandonados no meio do caminho (tinha um blog no meio do caminho/ no meio do caminho tinha um blog)…

Eu, por exemplo, nunca tive blog, nem jamais quis ter um, de qualquer tipo: poético, profundo, político, pontificante, paulificante, paulista, piauiense, pernambucano, etc. Lembro que dois ou três amigos versados em informática se ofereceram para montá-los para mim, até graciosamente, e um deles inclusive chegou a esboçar a estrutura de um site para a minha “obra”. Ele dizia que seria interativo, bilíngüe e tudo o mais. Eu sempre agradeci e, de modo geral, invariavelmente respondi a todos com um vago “é, vamos ver…”.

Claro que aqui não se tratava de nenhum preconceito de raiz “suassunesca” (vôte!) contra os novos formatos das coisas e outras novidades da cultura profundamente transformada nos dias que correm (e mais ainda se transformará, no futuro imediato, até se transformar de vez em algo talvez irreconhecível, pelo menos para os da minha geração)… Até porque, devo dizer, eu mesmo acesso blogues e, neles, já aconteceu de colher algumas coisas: uma citação interessante aqui e ali, uma informação eventualmente nova, sacada de algum canto, essas coisas do labirinto webiano. No mais das vezes, igualmente encontrei o desalentador número zero na área dos “comments” (ou, então, deparei com alguma espécie de gracejo — muitas vezes sem graça — como “comentário” de alguém que, na hora de escrevê-lo, não parecia estar se importando, no fundo, senão em se exibir a si mesmo como comentador para o oco da ausência de outros acessos comprovados, etc.).

Essa apatia, aliás, não é de agora, nem exclusiva da internet. As platéias de debates nas bienais, por exemplo, em geral são amorfas e nada têm a perguntar, vexatoriamente, a muitos palestrantes que acabam de fazer alguma exposição cuidadosa e bem articulada, ou então aos que participam de entrevista instigante como a de José Castello na última bienal recifense. Eu estava lá, assistindo ao crítico e romancista carioca radicado em Curitiba ser inquirido pela jornalista e professora Adriana Dória Matos, e, ao final, para a minha surpresa, quando Adriana facultou a palavra ao público, ninguém se mexeu para perguntar nada sobre os diversos assuntos que Castello havia abordado, com natural ênfase em literatura. Senti-me obrigado a improvisar perguntas, quando estava muito curioso em saber, primeiro, como aquele público específico teria recebido algumas observações da mente lúcida de JC. Depois que abri caminho com uma primeira indagação, outros então se dispuseram a perguntar coisas nem sempre pertinentes (como sói acontecer com as platéias das vibrantes, das alucinantes, das maracatutantes bienais)…

É evidente que os anos de chumbo têm, a respeito disso, gritante culpa no cartório (além da culpa tenebrosa nos cemitérios clandestinos). Eles “chumbaram” a ebulição dos anos 1960 em cabeças que, antes, se lançavam ao debate em cineclubes, auditórios de conferências ou fosse onde fosse que alguém estivesse dizendo alguma coisa digna de aparte, comentário, debate, qualquer coisa. No lugar disso, sorumbáticos óculos refletindo um vazio redondo de falta de curiosidade, conforme se deve deduzir em face do silêncio no qual os presentes-meio-ausentes terminam, hoje, por se afastar dos auditórios, enquanto alguns poucos se acercam para, mais provavelmente, pedir algum determinado tipo de orientação prática (estudantes, por exemplo, preocupados em atender ao professor que lhes indicou a palestra X como uma tarefa de aula) ou para timidamente solicitar o autógrafo num livro em oferta de saldão de “R$ 5,00 p/título”, na mesma bienal de cafés literários e bagaceira livre de livros & livros em “queima”.

Porém, imagino que haja mais do que a marca negra da ditadura (já um pouco afastadinha no tempo) nas abúlicas platéias que assistem a tudo, ouvem tudo e estão presentes como se não estivessem, o olhar dos anestesiados nos muitos rostos voltados na direção do palestrante, que não sabe o que pensar da apatia que ele enfrenta, igual em capitais diferentes e em diversas faixas etárias, a partir do tipo “adolescente despertando para a cultura que vai a quase tudo o que acontece”, etc.

Pois bem. Chegará o dia em que tais adolescentes inaugurarão — e abandonarão — um blog.

O que nos devolve ao cerne da questão: o que a insustentável leveza do ser da internet faz, realmente, com os conteúdos, desde a inconfiabilidade da Wikipédia, até o poeta que se torna conselheiro sentimental (um caso gaúcho, ao menos)?…

E os poemas? Os poemas que infestam as telas, ilustrados por pinturas de mulheres e pássaros, mares e luas vesgas? Os textos que tudo comentam?

Todos querem ter razão na internet, e é sumamente curioso como parece ser mais fácil xingar no teclado, digitalmente, do que ao vivo e pessoalmente, arriscando-se a ter o maxilar quebrado por socos de algum intelectual brutamontes, tipo o cruzamento de um Olavo de Carvalho com um Maguila reciclado.

Os poemas, ouso dizer, na internet parecem piores do que antigamente. Sem leituras formadoras precedentes, a dona de casa improvisa versos como a amiga se faz ceramista de cursos rápidos (pela internet, é claro). Em duas semanas, essa amiga já compra um miniforno e o instala na garagem da casa, passando a elaborar peças costumeiramente horríveis, assim como a vizinha lírica perpetra os versos que irão acompanhar quadros de pássaros de rapina cegos e mulheres de unhas dos pés vermelhas, nas imagens ilustrativas transferidas pelo webdesigner para dentro do blog dela (epa!).

E o juízo sobre filmes? Na internet, todos, literalmente TODOS se tornaram militantes da crítica de cinema. Um Lars von Trier é o típico cineasta que inspira posições antagônicas, se não mesmo inconciliáveis, enquanto o espanhol Pedro Almodóvar e principalmente o lamuriento clarinetista Woody Allen colhem mais elogios do que cacetadas mal dadas. Para criticar um filme parece que tudo o que se faz necessário, na internet, é ter uma opinião — e “opinião e cu todo mundo tem”, já dizia Dirty Harry, aquele policial durão que Clint Eastwood encarnou há tempos. Aliás, Eastwood é instável na internet: ora “gostam” dele, ora “não gostam”, e as razões parecem passar mais por cus do que por cabeças.

A Wikipédia: ninguém parece dar importância ao que há de duvidoso e deficiente nela. Os dados que ali aparecem, sobre tudo e todos, são fruto de uma coletiva construção de ignorâncias anônimas, laboriosamente sustentadas por falsa intimidade com a amplitude infinita de assuntos que lá se perfilam, à espera de cada incauto aluno que troque a Enciclopédia Britânica (extinta, recentemente, na versão impressa) paga pela gratuita Wiki de Waikaikai, prancha surfando na praia rasa do conhecimento…

Breve historinha: um certo padre Joaquim Guerra foi citado pelo poeta Gerardo Mello Mourão (por sinal, poeta muito mal biografado na Wikipédia) como um português sábio que trabalhou anos e anos como missionário na China e que, um dia, se deu ao trabalho de explicar por que nada escrevera sobre suas experiências no ainda hoje misterioso país: “Os velhos confucianos chineses costumam dizer que os estrangeiros que ficam um mês na China escrevem um livro; os que ficam um ano, escrevem um discreto artigo, não mais… e os que ficam de dois anos para cima, não escrevem nada.”

Afinal, na Wikipédia, você pode escrever linhas e mais linhas sobre a China só porque assistiu a um documentário no Discovery Channel.

Como será o mundo formado pela informal informação? Não sei. Nunca visitei a China, jamais tive um blog. E por qual razão, ó Monteiro, você nunca teve um blog, quando todo mundo tem um blog (ou ao menos um buldogue)?

Bem, buldogue eu ainda posso vir a ter, pois gosto de cães, mas macacos e cachorros me mordam: eu nunca terei um blog! “Não? Não mesmo?”.

NÃO.

Porque, num blog, eu gastarei o material das minhas palavras e do meu silêncio. Nos blogs, os escritores escancaram-se e usam — terminam usando, de um modo ou de outro — a matéria-prima que deveria ser objeto da solene atmosfera de um mosteiro chinês de ex-padres trapistas que tenham se transformado em xintoístas que perderam a voz.

Num blog, eu ficaria, cedo ou tarde, mais enfastiado de mim mesmo do que já estou, sem me cercar de espelhos que reproduzem minha cara, minha mente e tudo o que penso, sobre todas as coisas que atropelam a minha vida (e as que não atropelam, também). Eu me suportaria menos, é claro, se tivesse um blog de Fernando Monteiro mantido por Fernando Monteiro para explicá-lo aos (pouquíssimos) admiradores de FM, ou para endossar as críticas que os inimigos de Monteiro fazem ao Fernando dentro dele, como se procurasse a finitude redonda dos limites da casca de um ovo cozido porém ainda não partido na beira de um pires. Enfim, eu teria mudado de nome e viajado para a China (de novo?), se eu tivesse um blog em chinês e português, para me devotar ao silêncio daqueles que não escrevem — porque o silêncio é de ouro e não é preciso dizer mais nada.

Tudo já foi dito — e o que resta ainda por dizer, de sábio e maravilhoso, que seja dito por Caetano Veloso.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho