Sobre “diários” & literatura

“Diários” são anotações varejadas leve ou custosamente, à maneira do “querido diário”
Ilustração: Carolina Vigna
27/01/2017

Creio que eu possa dar partida ao assunto por uma espécie de tautologia (um tanto reversa?): “diários” são anotações varejadas leve ou custosamente, à maneira do “querido Diário:”, dois pontos, das moças, ou, então, no sentido das observações comprometidas pela não-observação das condições suspensivas próprias da literatura conforme nos textos que produzem capitães de marinha anotando — tudo —em – suas viagens, em “livros de bordo”, diários perfeitamente necessários e úteis à sua profissão e no comando de barcos que não pretendem trafegar por outros mares.

Disso, talvez possa se seguir o primeiro corolário cor de pérola do colar das coisas sempre em fio perigoso para nós todos, conforme anotou Antonioni, que, por muito citado em diários, etc., nunca escreveu um, nunca teve a vaidade de circunstanciar seu dia a dia solenemente anotado para o futuro que aposenta os diários (diariamente escritos pela verborragia da mente solta, um pouco entregue a si mesma e alheia à pergunta que Lawrence mandou gravar acima da sua porta de Clouds Hill: Ou Phrontis?)

[Que importância tenho eu? — inquirição grega no fim de uma festa bêbada como os barcos de Rimbaud ainda na Grécia Antiga dos heróis que se calaram sobre suas odisseias por outros escritas.]

Quem escreve um diário acredita nas horas do Ego autoconcentrado. Claro. E acredita não em si mesmo como um filtro máximo: acredita em se acompanhar num monólogo duvidoso contra as horas, o tempo sinistro, o limite lacônico das nossas existências consignadas, tão fragilmente, no ato inclusive de escrever diários — pior, longos diários atravessando os anos sem emoção — pelo menos em escrita cotidianamente orgulhosa. Daqui também decorre uma afirmação para mim tranquila e inevitável: só são verdadeiramente literários os falsos diários. Nenhum autêntico diário pode pretender o estatuto de literatura sem a marca do simulacro que apenas “finge” as anotações diárias, enquanto o ego, o espírito que se observa como um Narciso encantado, vê o passar das horas — o rio terrível, de águas nunca as mesmas, etc. — como um repetição das imagens dos muitos espelhos que temos, por exemplo, em The Servant, naquela casa aristocrática que, ao final da obra cinematográfica de Pinter/Losey (muito mais do que de Robin Maugham) nada mais tem de nobre e, então, reclama de farelos de bolo e pratos espalhados como num restaurante.

Bem, voltemos à literatura (cinema não tem lugar cá no “Rasca”). Retornemos ao território pedestre dos diários que pretendem aprisionar a vida só decifrável através da “anotação”, tortuosa, da ficção que interroga a Realidade, transfigurando-a e nos devolvendo uma imagem deformada do modo sutil como um Paul Gauguin sabia retratar, como pintor, o real “irretratável” diariamente.

“Que sonhos tinham os que esculpiam palavras ao vento?” — pergunta John Howard, na obra que César Leal tentou encontrar em muitas bibliotecas. “Existia?”, perguntava-se, por fim, o poeta de Tambor cósmico, fazendo ressoar a dúvida sobre o Howard citado num livro de 1985.

Talvez esse Howard fosse mesmo ficcional, como emblema da vida que só explica pela fantasmagoria — e não pela anotação, circunstanciada, sobre a vida que ficou para trás na confusão das horas jamais devolvidas ao sentido do que “se passou” apenas porque a ingenuidade anota palavras, pensamentos e (até) obras.

Os diários da ingenuidade (sobre isso) podem apenas nos ensinar o mesmo que um funcionário da corte bizantina modesta e poderosamente deixou consignado num poema escrito há mais de anos. O título é, justamente, A vida:  

Cada manhã nascemos novamente,
dia após dia, sem conservar a memória
da vivida experiência.
Tornamo-nos por completo estranhos,
então, ao nosso ontem longínquo;
de novo começamos a viver,
pois tudo que já foi
está perdido sob a lua
e nada resgata a vida
que ninguém pode dizer
“é minha”. 

A respeito do autor desse A vida, só sabemos que o chamavam “Paulo, o Secretário” — e restou a notícia (não o diário) da sua vida transcorrida, afirmam, no século 6 da Era Cristã na qual esse “secretário” Paulo nos legou alguns poemas plenos de uma sensibilidade de timbre quase moderno. Anotação à maneira de um diário (?): “A profissão do poeta, sempre colada ao seu nome nas poucas referências que restaram sobre ele, decerto se refere a algum cargo que terá exercido em Bizâncio”. E mais não há sobre o “Secretário”, assim como pouco resta sobre o menos longínquo “Howard” daquele verso que intrigava César, do mesmo modo como “Vasco Aspades” segue estabelecendo alguma confusão sobre ter sido, mesmo, um cineasta português falecido quando as imagens duvidosas do Cinema completavam cem anos. E eu me pergunto: as próximas ingenuidades “diarísticas” serão as de alguns futuros franciscanos filmando-se, diariamente, através dos vindouros modelos de “smartphones”?…

É. Ou poderá ser.

NOTA
Em suíte desse tema (diários), registro o aparecimento — em quatro volumes — do Diário de Francisco Brennand, lançado por uma nova editora, a Inquietude um tanto inquietante. Porque são anotações do ceramista e pintor pernambucano que, certamente, exigiam um trabalho de edição, propriamente dita, dos originais em quase duas mil páginas. Quando Brennand completou 60 anos, eu editei um caderno especial, no Diário de Pernambuco, quase inteiramente constituído de trechos desse seu “Diário” iniciado desde tão remota data. E, mesmo naqueles trechos, fiz o trabalho que se exige de um editor: dar sentido, “editar”, não aproveitar o material bruto que foi produzido sob os mais variados influxos, muitas influências e diversas impressões passageiras. Nenhum diário — mesmo os que são mais frequentemente citados (o de Delacroix ou, bem mais recente, de Balthus, por exemplo) — foi editado assim, entregue ao público em “estado natural”, como diários por definição ainda proto-literários, digamos, num território amado por Brennand, mas pelo qual ele infelizmente não avançou como o ficcionista que poderia ter sido! Que pena.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho