SATÚRNIA 1 8 2 1

Fragmento do “Prólogo” do poema inédito Satúrnia 1821 — ainda em fase inicial de elaboração
01/04/2013

ainda não posso ver claro

não, ainda não,
na luz incerta que se infiltra
por olhos inundados da sombra
de avencas num limbo apenas
devassado
enquanto ver claro talvez não seja
reparar na parede obscuramente
tramada pelos finos riscos
da planta transparente de verde
contra prata de cabelos de arsênico

trata-se de ver
no espaço transmigrando a unidade
de tempo também abstrato na forma
vazada do oco da boca sem cabeça
do mundo

no sol de sangue,
sabemos que ver claro
não significava ver através
do véu de plasma
(e ainda assim, maya,
prosseguir olhando como se fosse
fonte de imagens,
versos,
literatura invertebrada gasosa
no nada)

talvez ninguém possa ver claro,
nunca, em momento algum,
seja imperador ou vassalo
numa fazenda desolada
na ponta extrema de uma
ilha de sombras baixas
de aves desorientadas
pela lonjura

era menos o passado
do que jamais ter visto
o que parecia claro na frente
da trama em que enredamos
os fios congelados
entre uma manhã e outra
uma hora e mais uma soma
hipotética de sessenta minutos
contados como se houvesse marcha
nos relógios
o sentido horário
o tempo que passa quadro a quadro
dos passos de dança
um palmo acima
in the dark
na injustiça do olho:
ficar atrelado, o tempo todo,
ao mais elegante animal humano,
infelizmente apagado asteróide
no lusco-fusco do central park
hoje sem música

escrevo ainda suponho por motivo
algum
que consiga ver nesses anos
borrados desde o mármore barato
das feiras das ladras,
nos mercados de pulgas,
de portobello road na lama de
vanity fair, thackeray
sucedido pela avant-lágrima
pluralettre flúvia de tudo
que flui para o luto pelos letes
sem orontes
em horas viciadas abaixo
da linha d’água no meio
do fogo de um apocalipse
novo

ver claro?
será, talvez, ver fora da nuvem
de jacintos vencidos por corpos
de ginastas movimentando-se
sobre esteiras de quilômetros
e quilômetros
uma estrada de olympia
a conduzir (ou não)
de qualquer modo para formas
de cânceres
de qualquer jeito para a morte
de qualquer sorte para um fim
que nada explica da alma
a palavra desabada sob a tampa
de ferro de um piano de chumbo
esmagando dedos de louça como
a nuca ainda suave

ver será, claro,
contemplar na escuridão
o fantasma (ainda) de uma
miniatura de infinita graça?
foi reduzida a pó debaixo
do sapato de sola grossa
do cão ciumento da cadela
da inocência que ainda comove
enquanto não posso ver claro,
porém posso ver
que foi um erro seguir
para o fundo de novembro
atravessando pedestre fronteira
na noite de desordens da satura
confusa de barracas,
garagens de ferrugem e luzes
de supermercados cheios da vida
rude dos subúrbios
no sábado pronto
para o vício depois do entardecer
entre bêbados e um quintal
de jasmins subindo até a modelada
pêra de seios desnudados
na falta de palavras

quando começou?
quando terminou?

ainda não posso ver claro
num mundo cego para começos
e términos no coração do congo
de dentro,
sudão da treva deformando
lábios de chicletes
colados em borrachas & plásticos
derretidos como a cera mortuária
da máscara que revelou
quão nobre era o rosto do morto
de santa helena,
pálido zombie no desterro
tão longe
quanto poderia ser possível
antes (“behold a pale horse”
crescendo da capa um rochedo
ao norte de nada além da água
do atlântico sul sem remorso)

 

é tudo que não deixa ver claro
e que favorece não se ver
a morte montada no cavalo amarelo
que foi branco de úlcera das batalhas
vencidas e daquelas perdidas
sob a cortina de névoa de canhões
estilhaçando carne num mar de morte
de novecentos mil homens

restam esses poucos agora
perfilados
ante a solidão de um ataúde aberto
ao sol fraco da ilha-armadilha
de umidade em desfecho?
de exílio extremo até o opróbio
do detalhe:
“senhor b”, não general,
nunca imperador e nada
que pudesse ainda brilhar
na zona insalubre da granja no fim
da finisterra escolhida a dedo
típico da indignidade de uma raça
de comerciantes dispostos a exibir
alexandres
césares
julianos e os cães na jaula suja
da modernidade assim começada
sem clareza
e sol de templos da núbia interior
em toda parte afundada

é estranho que esse símbolo
— um assassino sereno de soldados —
possa ser maior do que a época
e suas vítimas de dragonas
nas quais enxergavam ouro
não de trapaça,
mas do temístocles novo
entre os persas inimigos da carta

eis porque tudo ainda depende
da noite daquele rochedo:
há um nexo de archotes não apagados
pela fina umidade fustigada
na madrugada do sepultamento
reles
sem honras nem bandeiras
e muito menos orações de bocas
soprando sobre o corpo depositado
simplesmente na cova cercada
de armas de ombro a ombro
como se o morto pudesse se erguer
para protestar, ainda uma vez,
contra a deselegância do governador
sem grandeza na militar servidão
da santa aliança de côvados de pães
com os centavos da história
antes do amanhecer de escolas
e livros de horas roubadas
aos deveres da casa da rua
júlio verne [assim grafado]
um nome de tio velho
em intimidade misteriosa dos passos
na frente deixados para trás entre
seres sós e sinais

palavras não deixam ver claro:
sóis, sinais e seres vazados
pelo oco de transparência
sob o mármore do panteão
de todos os deuses que caíram
dos pedestais de imagens
de anões acocorados

e filmes não deixam ver claro
os borrões da passagem de moscas
pelo azedo de umbigos mal lavados

e arte de cadáveres infestam de carniça
museus varridos por senhoras
voltando para casa sem cumplicidade
com aquilo que deixaram limpo
antes de novo sujo entre salas
climatizadas para excremento
que passa por arte

são fatos históricos
anotações de pirâmides cobertas
deo ouro que roubaram
junto com o tesouro de alusões
para a sombra daquelas flores
dos peitorais ocultos nas câmaras

sua biografia?
um instante do estrondar de pólvora
as leis deixadas para o futuro
egiptologia
e uma urna depois levada para o panteão
da desonra no episódio de vichy
que o calendário já superou
porque todas as coisas passadas
precisam se tornar apenas históricas
fatos
insígnias num museu
uma cama quase de monge
uma causa que se dobrou
como se dobra um rolo de pele
de cabra em fragmentos
de falta de sentido até agora
desde o ano de satúrnia:
mil oitocentos e vinte e um.

NOTA
Fragmento do “Prólogo” do poema inédito Satúrnia 1821 — ainda em fase inicial de elaboração.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho