“A verdade é aquilo que com o decorrer do tempo mais se contradiz” — essa frase está escrita (à mão, em francês) na falsa folha de rosto do livro La vie sentimentale de Paul Gauguin, de Jean Dorsenne, que afirma ter pretendido “limpar a imagem do pintor selvagem na pintura”.
A verdade — a respeito de todo e qualquer escritor lateral — é o que mais se contradiz, “no decorrer do tempo”, porque a verdade, no tecido da arte e da vida dos “laterais”, é feita de nós dos mais diversos e variados formatos unindo uma e outra, atando a arte à vida e vice-versa e versa-vice, porque o Escritor Lateral nunca está no posto principal, ele não quer isso, não se preparou para tal, deseja fugir de si mesmo e a arte — bem, a arte é só a arte para ele: não um ornamento, apenas um ornamento (vide Osman Lins, que denunciou o uso da arte como algo “ornamental” na visão de tantos escribas brasileiros), mas um seixo rolado que ele encontra diante do mar que sobrevive a tudo.
El gabinete del lector — de um lateral cujo nome eu deixarei à adivinhação dos leitores (poucos) que restam — nos conduz como esse seixo, mas rolando pelo mar da mente. Ou através dos secretos — e nem tão secretos para os tempos dos segredos que não eram para ser contados — palácios perdidos da leitura hoje ameaçada pela “favelização” (?) do pensamento e daquela Curiosidade (com C maiúsculo) renascentista reduzida à pura falta de concentração e foco e absoluta atenção que, sim, poderia ser devotada a um único livro a vida inteira, a um só poema até como quem absolutamente contempla a queda caprichosa de um floco de neve num jardim invernal.
O que aconteceu conosco?
O escritor lateral dos “anacronismos” (?) se pergunta, na lama mariana da literatura sem direção, na pressa atual em avalancha fatal para a civilização. Ele evoca o som de alguma serra dos Órgãos westminsternianos de quatro teclados manuais (e 81 registros) por sobre sons de heavy metal que alguma autoridade do turismo turco tenha permitido serem ouvidos — com estourar de tímpanos! — no grande anfiteatro da antiga Ephesus ainda suportando o sol, o sal dos corpos e a sensaboria das fotos dos Ipads, na era da falta de imaginação.
Somos uma raça já extinta — mas quando viremos a notar isso?
Na messe que enlouquece a quermesse, o Escritor Lateral não se preocupa com o sentido literal — e ignora o número da cadeira que deve ocupar entre os comensais do jantar cujo prato principal foi caprichosamente feito com o cadáver da Literatura.
À maneira do Stephen Hawking que acaba de anunciar que “a filosofia está morta”, esta Breve História da Literatura Lateral (?) faz como o renomado físico anunciou na conferência do Google Zeitgeist, em Hertfordshire, na Inglaterra (quando disse que “as importantes questões do universo não podem mais ser resolvidas sem a ajuda da física e da tecnologia como aquela vista nos grande aceleradores de partículas, pois esses campos não pertencem mais à filosofia”, que seria — para ele — uma linha de pensamento morta nos dias atuais).
O livro perdeu o lugar central da cultura há muito tempo — desde quando cada um era solenemente lido para a família, pelo chefe da dita cuja, com as bênçãos da Igreja onipresente — e a linha morta também da literatura só agenciará algum sentido na deslocação absoluta que despreza a realidade. O Escritor Lateral estará mais aparelhado para isso do que aquele que não observa o mundo ondulatório de partículas que ainda pode ser representado pela praia de McEwan — que deixou, aliás, de ser um lateral de qualidade, para se tornar um escritor desinteressantemente profissional… Mas isso é outra história (e aqui se interpuseram histórias laterais demais).
Creio que não me fiz entender — saudavelmente — ao falar (ou tentar falar) sobre escritores que escreveram para ninguém ou ainda aquele que, agora, permanece escrevendo somente depois da certeza de que não tem mais qualquer importância escrever, escrever e escrever. “O futuro nos vingará” — como dizia o homem sob a alcunha de “Hipnos”, diante de um mármore cuja beleza destronada havia sido resgatada de um mar de tempestade (mar-oceano, conforme Ledo-e-Ivo-Engano), sob a chuva cinzenta caindo na água, conforme digo eu que escrevemos agora, laterais da lateralidade mais extrema da arte que já não produz significação, sentido, sabedoria ou sequer palavras cuja ordem seja melhor do que aquela produzida por autocombustão nas bibliotecas fechadas. O Escritor Lateral se permite escrever com sentido que se forma somente sob a sua própria lágrima na chuva, conforme o poema no escuro da gaveta proclama sobre cidades mortas, civilizações perdidas, livros indecifráveis e animais que nunca existiram mas foram descritos por algum Marco Polo em alguma cela profunda de inútil prisão:
Agora, escuta, quietamente escuta, como se ainda fosse tudo a extrema angústia no fundo do coração de algum Sudão da alma.
Entretanto, contemplando onde antes havia esplendor na relva [“Glória na flor”…], o que oprime na Núbia interior, na Méroe de dentro, não é propriamente o esquecimento, mas a passagem do tempo — como passa um trem às escuras pelo azeviche de um túnel estreito — que fez mudar o negro cabelo à cabeceira do leito de nascimentos e mortes se sucedendo na solidão das coisas que para sempre se vão entre dois verões de búzios soterrados.
Então, apenas ouve, sem nada perguntar, sem coisa alguma inquirir a respeito das verdades difíceis que ainda restam por ser não escritas, mas — na “saudade do futuro” — vividas com absoluta calma.