Estou aqui com os contos de Hemingway traduzidos por José J. Veiga — 5ª edição (agora com o selo Bertrand Brasil) — relançados no ano passado. São 461 páginas correspondentes a vinte e um contos realmente magistrais de um escritor bem descrito na orelha assinada por Luiz Antonio Aguiar:
É pouco provável que se encontrem na literatura exemplos similares do tipo de fascínio que Ernest Hemingway exerce sobre os leitores. Paradoxalmente, poucos também terão sido em grau tão extremado vítimas de estereótipos. Quando mencionamos Hemingway, logo surge a imagem daquele que lutou em muitas guerras e correu o mundo, buscando a violência das touradas espanholas, das caçadas na África e das lutas de boxe; do escritor que exaltou o que seria um mundo masculino, onde as mulheres teriam função decorativa. Nada mais equivocado, como bem o comprova esta reedição de seus contos.
Aguiar passa a destacar alguns contos demonstrativos do que ele acaba de afirmar, mas eu não estou aqui para falar de Hemingway (en passant, concordo com a colocação inicial dele sobre EH), e sim de um escritor que não teve — mesmo nos EUA — nem um terço da fama acachapante do autor de Por quem os sinos dobram e que foi um especialista do conto basicamente do submundo dos pequenos malandros, do jogo e das apostas — um ator completamente urbano — que escreveu como Edward Hopper pintou os cenários de solitários de subúrbio iluminados pela luz melancólica de bares em finais de noite e até na manhã clara dos ressacados que têm de tomar metrô e trem para chegar em casa, ainda mais sós.
Refiro-me a Damon Runyon — e comecei falando dos contos de Hemingway apenas para ressaltar que as editoras brasileiras vão atrás dos consagradíssimos, dos passantes sobre o tapete vermelho do mainstream literário e não demonstram nenhum (ou quase nenhum) interesse pelos mais que interessantes autores que eu chamo de “laterais”, fixos num especial mundo que observam com alguma lente poderosa de aumento da sorte e da infelicidade, do destino ensolarado e da sina obscura, escritores discretos ao ponto de sumirem, eles mesmos, quase na espuma do nada de vidas meio anônimas (David Goodis, um bom exemplo) pelas quais às vezes optaram por fastio e elegância não refinada — a la Clifton Webb —, mas com um tédio tão grande de puxar o saco dos antigos editores e críticos de revistas e jornais (quando estes tinham o poder bem expresso no filme A embriaguez do sucesso, do ótimo Mackendrick), uns sujeitos parecidos com seus personagens na sombra da sombra de toldos cagados por pombos ou dentro de apartamentos, sentados, deitados, com vontade de assassinar um gato no cio, escandaloso no telhado onde uma pedra dificilmente alcançaria o bichano.
Bem, há muito mais coisa para falar sobre os personagens cinzentos de um mundo claro-escuro de becos sórdidos e docas sujas, aqueles “perdedores” das sublutas do boxe que se deixam vencer em nome de apostas perdidas para a vida. Olha, Damon Runyon os amava — e nunca quis vir para a frente das luzes dos antigos flashes depois substituídas pelas câmeras de TV entrevistando autores da moda que, depois, caem da moda, e, como um Gore Vidal, resolve sumir na Itália, na Espanha, em qualquer lugar longe do fracasso mais doloroso quando se foi dama por um dia, cavalheiro por um momento breve no palco.
Dama por um dia — levado ao cinema com esse título — foi baseado num conto de Runyon, por sinal (fecha aspas).
O único escritor brasileiro que, em letra de fôrma, eu vi elogiar (e muito) o Damon mais amigo de bandidos mais do que de mocinhos (ele era “compadre” do velho ladrão de gado Pancho Villa, depois revolucionário incapaz de tratar dos dentes a fim de tirar melhores fotos enviadas para os grandes jornais americanos) foi o falecido João Ubaldo Ribeiro, na mesma ocasião lamentando bastante que não existisse nenhum livro de Runyon traduzido aqui em Pindorama.
Que eu saiba, em língua portuguesa só existe um Runyon publicado e se chama Os apostadores de cavalos morrem tesos, publicado em 1966 pela brava Edições 70 — lusa até o dedão de papel. Nosso país bacharelesco na cueca e no fardão dourado das ABLs (ambicionadas por tantos de nossos escribas), no segmento editorial monótono que nos mantém na dieta celebridades da literatura — com e sem aspas — ignora não só Damon Runyon, mas outros escritores que eu costumo chamar de escritores “laterais” (Victor Segalen, Jane Bowles, Jack Schaefer, etc.). Já escrevi sobre alguns deles aqui. Transcrevo um trecho:
Laterais foram, desde Homero [o Poeta nunca lateral], todos os escritores que honrosamente não foram convidados para a festa do vizinho na voz de Cassiano Ricardo: “Em meu quarto, o silêncio e a lâmpada/ que me divide em dois:/ duas vezes eu e uma lâmpada só./ No salão do vizinho/ que não me convidou/ a mesa farta e os convivas/ bebendo um vinho triste”…
Bem, o poema segue — até chegar, no final, a fazer o brinde “aos excluídos”.
Voltemos ao lateral: é ele o escritor excluído?
Presumo que não seja precisamente isso, embora, de longe, pareça excluidíssimo.
Porque o escritor lateral, em princípio, nunca escreveu para pisar no tapete vermelho da Literatura com o L maiúsculo dos Grandes Nomes das Coleções dos Gigantes das Letras…
A atenção basbaque-monetária — tradicional do nosso típico editor tupiniquim — continua a ir para o (presumivelmente) mais “garantido”, mais “seguro” e mais óbvio, sem garimpar, como alguns editores portugueses costumavam fazer, aqueles escritores que caminham na sombra (da sua escolha), escrevendo nas horas vagas de viver e até dedicados a alguma profissão paralela que exercem com tanto afinco quanto a literatura (que não abandonam, ok?), homens — mais do que mulheres, sim — como Runyon com as suas amizades equívocas, as suas apostas fracassadas na maioria e os seus cigarros e pigarros que hoje infestariam os ambientes dos escribas que não fumam e que parecem também não beber, não trepar, não apostar, não saírem para “a margem” onde estão acontecendo algumas magníficas coisas anônimas que soam como “lágrimas na chuva”.