Pier Paolo Pasolini: 40 anos da morte do poeta mais vivo (final)

Pasolini morreu defendendo uma vida livre dos campos de extermínio
O poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini
25/03/2016

Pier Paolo Pasolini, todos sabem (ou quase todos — não sejamos tão otimistas!) foi partigiano, jovem membro da resistência italiana de armas na mão, para apontar contra os nazi-fascistas do coito maldito entre Roma e Berlim — aquela funesta aproximação que, inevitavelmente, viria mais cedo do que mais tarde. Eram dois mundos diferentes, um no antigo Lácio do estoico pagão Marco Aurélio e o outro, escuro entre os escuros carvalhos, nas florestas sombrias dos chefes germanos… Apesar dessa diferença entre luz e sombra, os séculos posteriores à longa exaustão de Roma (viajando para Bizâncio) iria levar até mesmo a uma “dinastia” visigótica longe da capital e, mais adiante, ao Sacro Império Romano fundindo tradições cristãs e bárbaras que preparariam esse século desconcertante que ofereceu, à História, o fatal encontro de dois dos mais sinistros ditadores de ascensão meteórica, cada um lidando à sua maneira com as frustrações do seu lado dos Alpes. A ascensão daquele mais “histriônico” — mas nem assim menos perigoso — foi evocada no começo deste texto em torno do poeta que, na juventude, literalmente combateu, num tempo especialmente trágico, e teve experiência direta também com a proeza de manter a lucidez em época tão trágica quanto capaz de gerar semi-Apocalipse antecipado no tempo, ainda quando havia esperança num novo humanismo (isso é tão velho!, agora que ficamos tão cínicos), quando os homens pudessem aprender a preservar valores morais e diferenças ideológicas, além da chama frágil — mas imprescindível, sob qualquer aspecto — Liberdade de pensar, expressar e, no final, de ser plenamente um ser humano respeitado nos básicos Direitos anunciados numa Carta que de novo se tornou papel tocado pelo vento (e úmida de sangue).

Seis anos depois, ele morreria ainda na defesa de uma “vida” livre dos campos de extermínio (também invisíveis).

Uma tarde em 1969
Naquela palestra de 1969 (o ano anterior havia sido o do controverso Teorema), Pasolini recordou precisamente isso, e nos disse (a todos que se encontravam naquela sala de ar refrigerado deficiente): “Naquele tempo — parecia que o diretor de O evangelho segundo São Mateus estava formulando uma parábola do Novo testamento — nós, os jovens e os velhos resistentes de um mundo que havia morrido, os homens e as mulheres (e alguns rapazes mal saídos da adolescência) todos virados contra os fascistas, sabíamos para quem apontar a arma; víamos fardas, camisas negras, covardes emplumados nas cidades, estradas e vilas. Hoje, partigiano sem a esperança louca num novo Humanismo, eu não tenho mais um inimigo visível, fisicamente identificável, contra o qual disparar com desespero e, se possível, a melhor pontaria. Pois o Inimigo se tornou um gás, uma influência sutil, uma Ordem não escrita de impiedade que continua predatória e assassina, embora já não possamos apontar com a mira da arma de fogo contra o fantasma aterrador do Fascismo que entrou nas nossas almas pelas portas abertas do sistema imposto pelo capitalismo selvagem que, já agora, é mais do que selvagem: é exterminador como um Anjo da Morte decretada contra a Vida”…

Seis anos depois, ele morreria ainda na defesa de uma “vida” livre dos campos de extermínio (também invisíveis). E permanece — indelével — na memória não da Itália profundamente mudada em outro país, desde quando se deu a madrugada sacrifício do poeta sincero, forte e livre, másculo no seu homossexualismo e belo como a Rosa dos cavaleiros andantes da justiça capazes de pôr o dedo na ferida de muitas formas:

Quanto ao futuro, escuta:
Seus filhos fascistas
Velejarão
Para os mundos da Nova Pré-História.
Eu estarei lá,
Como aquele que
Espera
Às margens do mar
No qual recomeça a vida.
Só, ou quase, no velho litoral
Entre ruínas de antigas civilizações,
Ravena
Óstia ou Bombaim — é igual —
Com Deuses que se descascam, problemas velhos
— como a luta de classe —
Que se dissolvem…
Como um guerrilheiro
Morto antes do maio de 45,
Começarei aos poucos a me decompor,
E na luz dilacerante daquele mar,
Poeta e cidadão esquecido.

[Uma desesperada vitalidade — fragmento — em tradução do poeta Franco Maria Jasiello; publicado no jornal cultural O Galo, de Natal (RN) —Ano 14, n. 6, junho de 2002.]

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho