Pier Paolo Pasolini: 40 anos da morte do poeta mais vivo (3)

O poeta Pier Paolo Pasolini queria explodir a realidade baixa dos medíocres
Ilustração: Ramon Muniz
02/02/2016

O poeta Pier Paolo Pasolini queria explodir a realidade baixa dos medíocres que se acocoravam para seguir ordens (tudo sempre precisa das “ordens” para seguir rolando em miséria & aviltamento), porém seu grito se tornava ainda mais dramático pelo sentimento de impotência diante de paradoxo como o dos jovens carabinieri de origem operária lançados contra estudantes herdeiros talvez de tédio.

Para ele, seriam possíveis “vítimas” ainda mais lamentáveis do que os rapazes bem de vida que nunca iriam verdadeiramente compreender a trajetória de um jovem camponês encontrando uma farda e taxativas ordens escritas na chefatura, sob as ordens do prefeito, que se curva diante do governador que baixa as calças para os empresários financiadores das campanhas políticas abençoadas por bispos que fedem dentro dos confessionários da Itália ainda pia quando se trata de observar a cor da fumaça da corrupção do Vaticano penetrado pelas lojas maçônicas, sob o comando das máfias das sociedades doentes.

A face reflexiva do visitante do túmulo de Gramsci (existe uma foto de Pasolini que justamente o mostra, assim, diante do túmulo do filósofo marxista num dia cinzento de chuva), o tom, circunspecto, do lamento do poeta antes mansamente político, iria se transformar em invectiva, lamentação vigorosa, denúncia cadente, insatisfação e não-acomodamento disposto a se transformar em militância corsária, a partir principalmente dos poemas em forma daquela “rosa” de uma beleza letal e de um difícil perfume.

O Pasolini que adentra a década de 1960 está transformado, e já não é o duro intelectual ainda compassivo, mas uma consciência desesperando-se em face da nova anemia coletiva instalada numa sociedade antes capaz de “marchar sobre Roma” (ainda que levada pela bandeira equivocada do Fascismo sem respostas reais para as “massas” manipuladas entre discursos e tochas acesas para o orgulho pátrio que não enche panelas, nem repara — de fato — as mais longas injustiças da Casa Grande contra a Senzala dos campos de Itália).

O “coágulo de sentido” que o Pasolini dos poemas em forma de rosa tenta formar implicava, praticamente, em tentar provocar um ACV (sadio) nas mentes europeias — e, particularmente, italianas — agora atraídas pelo canto de sereia (fatal) do fascismo da sociedade de consumo massivo que Pier Paolo irá denunciar, apostrofar, anatemizar até o final trágico da sua vida de poeta e cineasta transformado em profeta do Kaos. Arquétipo junguiano da Mãe, a rosa-símbolo se tornou também sanguínea nos poemas gritados, por PPP, entre reflexões políticas e filosóficas, que não poderiam mais ser apenas murmurados, num mundo em franca (e perigosa) desordem. Desde o Egito antigo, passando pelo mundo medieval penetrado do misticismo cristão (sem descartar os ecos fortes do chamado “paganismo” — que nunca existiu, em termo), a Rosa se forrou de significados esotéricos e populares — assim como ocorrera com a flor do lótus — desde o culto de Ísis até a Rosa Alquímica misteriosa na elaboração tardia de mitos já meio “seculares”.

Os poemas pasolinianos tornaram-se, então, secularíssimos na urgência de gritar contra as consciências mortas, para despertar as consciências vivas. O elemento erótico que corresponde a Ísis-Afrodite, em ponte da cultura egípcia para a grega antiga, reveste-se da modernidade de um poeta que pretende falar para multidões de carne e osso — e talvez mais de carne, acima de tudo, na certeza um tanto melancólica, “pós-cristã”, de que a vida é aqui e agora, enquanto se passa, com a duração de uma rosa, maio de 1968 (e outros meses e anos)…

Também não se pode ignorar o fato desse poeta ter realizado o seu primeiro filme em 1961. Com ele, estava aportando ao cinema “uma nova forma de fazer poesia”, enquanto recebia, da antigamente chamada Sétima Arte, uma espécie de oitava maravilha: o meio brutalismo (hã?) de uma linguagem imersa no dia a dia de gente vivendo suas vidas, entre bicicletas e sonhos roubados por ladrões de objetos e consciências. Isso — exatamente isso — torna Pier Paolo Pasolini um poeta “diferente”, um bardo com um recado urgente, o homem que eu pessoalmente vi, em 1969, causando impacto enorme numa plateia maciçamente do Terceiro Mundo que ele amava.

“O que vocês estão fazendo aqui?” — perguntou, logo ao iniciar uma palestra agônica, sentado no estrado sobre o qual estava uma pesada mesa ornada de flores (não eram rosas) à frente das “autoridades universitárias” presentes para honrarem o conferencista PPP. Que rejeitou o assento entre seus pares, e desceu do praticável com a mesa festiva, para nos falar diretamente e não por trás de arranjos de floristas e copos de água filtrada. É a lembrança pessoal que guardo dele, numa tarde romana já distante: essa do poeta e cineasta bem à nossa frente, italiano de estatura mediana e enxuto de carnes como um camponês friulano provado na vida, trajado esportivamente (os óculos escuros das fotos, mocassins brancos — e a intensidade dos seres de exceção)…

Aquele “camponês” era um sólido e atormentado homem de muitas artes, militante do PCI (do tal foi expulso) e perseguido da Igreja, naquele momento, pelas “provocações” do seu filme Teorema. Essa ainda hoje instigante e enigmática obra de misticismo moderno que também nos inquire, como o seu criador o fez, naquela altura, sobre “o quê” estávamos fazendo ali, jovens de outros continentes numa Europa já quase totalmente dominada (em 1969) pelos fascismos da sociedade de consumo de massa — repetindo o “bordão” dos seus últimos anos de desespero, antes de ser trucidado, na praia das cercanias de Roma, por “ragazzi” cumprindo ordens de alguma(s) voz(es) até hoje impune(s).

>>> Conclui na próxima edição

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho