Os livros do escândalo (final)

Na língua desabrida de Shakespeare, Maurice conseguira publicar muita coisa “escabrosa”, posta à venda na capital francesa às vezes sob falsas capas
17/10/2015

Na língua desabrida de Shakespeare, Maurice conseguira publicar muita coisa “escabrosa”, posta à venda na capital francesa às vezes sob falsas capas, conforme foi pela primeira vez detectada por atenta professora americana (de volta do verão na Europa), em edição do New York Herald Tribune de setembro de 1950: “Logo no primeiro dia no navio, eu vi um garoto e uma garota lendo um exemplar de Jane Eyre. Na manhã seguinte, vi mais meia dúzia de outros jovens estranhamente absortos na leitura do mesmo romance de Charlotte Brontë. Fiquei contente até o último dia da viagem, quando por acaso encontrei um exemplar de tal “Jane Eyre” numa cadeira do convés e o peguei (…) Dentro estavam os dois volumes de Henry Miller, Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, cuidadosamente encapados por um editor de Paris…”, que não era outro senão o proprietário da Olympia.

Trópico de Câncer havia chegado em 1932 à mesa do pai de Girodias, na Obelisk Press, e mesmo Kahane levou dois anos para publicá-lo. O lapso de tempo, de 1934 até as tais capas “Jane Eyre” etc, de vinte anos depois, dá boa ideia da perseguição, em geral, dos livros editados em brochura barata, com o título geralmente em preto: Black Spring, do mesmo autor da “Trilogia Rubra”, The Black Book, de Lawrence Durrell, Winter of Artifice, de Anaïs Nin, Haveth Childers Everyhere — extraído do Finnegans Wake —, de James Joyce, Boy, de James Hanley, The Young and Evil, de Charles Henri Ford e Parker Tyler, My Life and Loves, de Frank Harris, etc. Nascido em Manchester, o velho Kahane se transferiu para Paris, ao casar com a francesa Marcelle Girodias, e havia se mantido do lado bom do canal da qualidade editorial, mas o mesmo não pode se dizer da atividade do filho Maurice. A história dos escândalos literários, no Ocidente, vai ter que reservar um longo capítulo para os editores e, neste, o nome de Girodias — não só como sucessor de Jack Kahane — vai ser a citação mais constante, infelizmente não só pela qualidade das obras publicadas. A Maurice, nunca importou editar os clássicos ao lado de textos como A história de O — um típico “subconto de Genji” escrito, apenas para chocar, por Dominique Aury, sob o pseudônimo de “Pauline Réage” — e outros títulos que não honram, exatamente, a linhagem francesa dos divulgadores de Sade, Restif de la Bretonne, Apollinaire, Miller, Genet, Bataille e… Nabokov?

“Somente um livro me rendeu muito dinheiro e esse livro foi Lolita”, declarou o próprio Girodias, a respeito da história do emigrado apaixonado pelas “Lolitas” que ele vai encontrando a sorver inocentes milkshakes ao longo da nada inocente América. Filho de “um eminente estadista russo do grupo liberal, eleito membro da primeira Duma, avô paterno ministro de Estado da Justiça sob o czar Alexandre II” (conforme a ficha biográfica que chegou às mãos do editor, junto com os originais), Vladimir Nabokov entrou em contato com Girodias através da agente literária Doussia Ergaz, em abril de 1955. Publicado em setembro do mesmo ano “fatídico”, para o escritor, o romance ganharia tanto as vitrines das livrarias quanto as manchetes oriundas dos tribunais franceses e americanos, por conta do escândalo e das disputas entre o autor e a editora (que não trabalhava com contratos escritos, como parte da sua vaga clandestinidade).

Era também uma época que estava acabando, prestes a adentrar o território da verdadeira pornografia — onde Lolita afinal entraria (assim como a palavra “ninfeta”), no setor pedófilo dos books de oferta de carne tenra para amantes sombrios. O livro, entretanto, não pertence, propriamente, ao catálogo “negro” da Olympia Press, por ser a obra de arte refinada que conhecemos, conduzida por um mestre da narrativa mais interessado no sentimento dúbio — de tristeza velada pelos tons de perversão — do personagem central, Humbert-Humbert (que não era nenhum alter ego do escritor e professor na Universidade de Cornell). Nada a esconder, portanto, incluindo a verdade incômoda daquele ser tantalizado por toda e qualquer “Lolita” frágil — que o narrador acompanha, com crispação de artista, nas suas transformações de crisálida colhida na rede do registro melancólico cuja “captura” final — e perturbadora — é a da falsa inocência que talvez implique em rever o conceito da Natureza culpada.

Num mundo em desordem, a qualidade do romance por si própria ainda o defende, como no caso também do humor surreal de Les Couilles Enragées, de Benjamin Péret — traduzido, em Portugal, como Os tomates enlatados (um “trocadalho” infeliz). Ainda mais radical, a qualidade suprema do texto de Le Con d’Irène eleva mais uma edição “maldita” ao patamar da alta literatura, erótica ou não. O autor de Irène permaneceu no anonimato, durante alguns anos, até que autógrafos vendidos em leilão parisiense estabeleceram que o livro fora escrito pelo sisudo comunista Louis Aragon. Surrealista da primeira hora, Aragon nos legou coisas como Le Libertinage, Le Paysan de Paris e Traité du Style, e teve a fraqueza apenas de não assinar a surpreendente novela que Jean-Jacques Pauvert sonhou editar com o nome verdadeiro do autor na capa de Le Con d’Irène (mais uma vez Portugal: as “edições & etc.” lançaram, há vinte anos, uma tradução de Aníbal Fernandes, que colocou “cona” para evitar a franqueza do título original).

Albert Camus considerava Irène o mais belo dos romances relacionados com o erotismo, e André Pieyre de Mandiargues (em Troisième Belvédère) o descreveu com justiça: “A todo momento, Irène utiliza o sexo como objetivo ou utensílio de escândalo, instrumento libertador, portanto, mas os amadores do erotismo no sentido que hoje damos à palavra irão se decepcionar, ou mesmo se desagradar, com o furioso ataque do autor contra a baixeza do mundo que o rodeava, na França burguesa de 1928. (…) De um tal esplendor é a prosa de Irène, porém, que me recordo de muito poucas coisas na literatura francesa capazes de aguentar a comparação, e de nenhuma sei que lhe seja superior. Lautréamont, Vauvenargues são os nomes que me ocorrem diante dessa narrativa inseparável do Surrealismo, desse poema em prosa que é, certamente, uma das coisas capitais produzidas pelo grupo de André Breton e dos seus amigos, na sua época mais poderosa”.

Resta que os editores brasileiros façam chegar mais obras malditas, desse porte, às vitrines das nossas livrarias cheias de obras sobre culinária e saúde do corpo etc. — porque há um mistério na “pornografia” que pode significar inesperada conquista da saúde da alma, segundo uma leitura correta dos “santos” mais desbocados.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho