Os cem anos de Ritsos

Ao mesmo tempo em que lutava contra a direita, Yannis Ritsos escrevia poemas e dramas entre o contemporâneo e o histórico
Yannis Ritsos
01/05/2009

No século 20, a literatura grega moderna esplendeu (é justo que o verbo seja não menos que este) principalmente através das nobres vozes de alguns inspirados poetas, ora dispostos a cantar, melancolicamente, o passado denso de ouro e majestade, batalhas e mar, mármore e elmos — como o fizeram Giorgios Seferis (Nobel de 1963) e Odysseus Elytis (Nobel de 1979) —, ora buscando decifrar as máscaras do país profundo, imerso no sono do folclore balcânico (caso do grande Angelos Sikelianos), ou então mirando, nos olhos bem fechados, o relaxado sono do amante — com aquela solicitude tipicamente alexandrina de um Konstantinos Kaváfis –, ou ainda se dividindo entre o olhar para trás e o tentar defrontar alguma forma de futuro nas neblinas do hoje, conforme preferiu um poeta declaradamente “de esquerda”: Yannis Ritsos, nascido há cem anos.

Ritsos veio ao mundo no seio de uma família solidamente fincada em Monemvasia (o “Gibraltar grego”, situado a sudoeste do Peloponeso), no dia primeiro de maio de 1909.

A moira — palavra mais complexa do que “destino” — foi adversa ao poeta desde o início, trazendo-lhe a doença (tuberculose) juntamente com tristezas pelo fim do pai e de uma irmã em hospitais psiquiátricos. Ritsos mesmo passou grande parte da juventude longe do mar que vigia o rochedo de Monemvasia, na sombra de quartos de sanatórios muito longe da luz e distantes demais do som cavo das ondas, quando rebentam como rebentava a fúria de Fúrias míticas.

Depois das provas iniciais da vida, vieram os livros de militante: Trakter [Tratores], em 1934, e Epitaphios, em 1936 — este simbolicamente queimado próximo de Plaka, abaixo da nobreza serena da Acrópole. Quem queimou Epitaphios foram os esbirros do governo fascista do general Metaxas.

“E então, a guerra maior trouxe o fogo”… por sobre o afastamento das alegrias mais simples (reservadas aos sãos). A família de Yannis foi mais uma vez atingida. Na Grécia ocupada, o jovem escritor se viu de arma nas mãos, lutando duramente na resistência espalhada pelos montes de pastores e cabras ágeis. No lugar da caça nunca experimentada, o inesperado de se sentir caçado pelos nazistas na aventura malfadada do Egeu — que lhes custou os olhos da cara de nariz [mais do que] torcido para os não-arianos.

Nota de pé de página da história: os soldados de Hitler amargaram a conquista de Creta e o domínio de ilhas brancas da espuma do ódio a todos os tipos de invasão (hoje, como odiar os turistas que “invadem” Hydra, Poros e Egina — as dos passeios baratos — com as armas da vulgaridade instalada na atmosfera ainda hierática das Cíclades?)…

Voltemos ao poeta Ritsos, que “viveu uma vida de herói antigo” — conforme dizem os gregos que amam os poetas-heróis.

Bem diferente da aparência de funcionário levantino de um Seferis, o seu perfil era igual aos das moedas enterradas entre as ruínas: ouro, prata, bronze e cobre escondidos no meio das derrubadas colunas — as mesmas contempladas pelo menino de Monemvasia, cedo obrigado a conviver com as tristezas de um adulto.

Como a Espanha no coração de Unamuno, a Grécia lhe dolía, Yannis Ritsos, ainda mais fundo do que doera a doença injusta no peito do rapaz.

Quando a guerra acabou, sua guerra de esquerdista começou — contra a direita à espreita, sempre. Ao mesmo tempo, escrevia, escrevia e escrevia: poemas, dramas e traduções entre o contemporâneo e o histórico, ambos misturados por uma dicção solidária (também sempre).

Na Guerra Civil — três anos descontentes, entre 1946 e 1949 —, o poeta de Monemvasia foi combatente entre os guerrilheiros comunistas. Derrotado com seus companheiros de pistaches e esconderijos, Ritsos foi preso e mantido prisioneiro durante longos quarenta e oito meses. Ao mesmo tempo, o seu Epitaphios, posto em música por Mikos Theodorakis já nos anos 50, iria se tornar o hino das manifestações de rua, ainda de estudantes e operários, antes de 1968 (antes de se separarem, no maio da França).

Voltemos à Grécia dos poetas: o amadurecimento do Byron do Peloponeso vem em obras como Romiosyni (1947) e Sonata ao luar (1956) e outros livros compostos sem medo de juntar a esperança política ao desespero pessoal e, talvez, intransferível. Em resposta, a odiosa Junta Militar no poder naquele tempo, faz o quê?

Manda prendê-lo. Exilado, Yannis Ritsos é proibido de publicar até 1972 — quando caem os “coronéis” indignos da história grega. De fato: estão esquecidos na sua infâmia soprada pelos ventos de Eleutheria (Liberdade).

O país de Palamas se volta para dentro, entre o turismo, o desemprego e a história acima das nuvens de poluição que ameaçam Atenas e (principalmente) a Acrópole de Péricles. E o poeta “da paz e da solidariedade” segue vivendo nos 117 livros que deixou não só para os compatriotas, desde quando morreu dormindo [morte reservada aos justos] no dia 12 de novembro de 1990.

Assinalando os cem anos do seu nascimento, temos nas mãos — fora de seqüência — estes seis curtos poemas que expressam um pouco do sentimento do mundo cotidiano que animou um dos quatro maiores poetas da Grécia dos (chamados) tempos modernos.

Seis poemas de Yannis Ritsos

Inelutável

Tarde sombria como um bolso vazio.
No fundo do bolso um buraco doce, penugento.

Por lá passas um dedo em segredo,
tocas a própria coxa como se tocasses
outro corpo, maior, estranho, profundo
— o corpo da noite ou da tua morte.

Por esse buraco caem as moedas todas,
mesmo as de ouro, cunhadas com a efígie
esplêndida e jovem do Príncipe dos Lírios.

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Corrida de cavalos

Cortaram lenha do bosque. Acenderam a pira. Sobre ela colocaram o morto.
Depois começaram as corridas de cavalos, para prestarem honras
ao digno lutador e à sua beleza. Depois da meia-noite,
os homens, extenuados das lutas, não puderam chorar.
Apenas o cavalo de Antíloco, todo negro,
todo reluzente à luz das chamas, apoiando-se
nas patas traseiras, saltou por sobre a fogueira e perdeu-se na noite.
Pelo acampamento ficou aquele cansaço maravilhoso, supremo,
como um esquecimento, como uma serenidade, — o último orgulho de um homem.
Quanto ao cavalo de Antíloco, ninguém mais o procurou.

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Coisas simples e incompreensíveis

Nada de novo — repete ele. Os homens matam-se ou morrem,
sobretudo

envelhecem, envelhecem, envelhecem — os dentes,
os cabelos, as mãos, os espelhos.
Aquele vidro do candeeiro, quebrado — foi consertado com um jornal.
E o pior de tudo: quando aprendes que algo vale a pena, já passou.
Então se faz uma grande serenidade. Chega o verão. As árvores
são altas e verdes — muito provocantes. As cigarras cantam.
À tardinha, as montanhas azulecem. Lá de cima descem
homens obscuros. Coxeiam ladeira abaixo (fingem que coxeiam).
Lançam cães mortos ao rio, e depois, muito tristes e como
que irritados
dobram os sacos de linho, coçam os testículos e olham a lua
na água. Somente essa coisa inexplicável:
fingirem-se de coxos, sem que ninguém esteja a vê-los.

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Contradições habituais

As palavras — disse — as palavras silenciosas, nossa única companhia;
procuradas, prolongadas (elas que nos prolongam);

a paisagem aprofunda-se; descobres não só os ossos,

mas também belos corpos, e asas —
que vestes enquanto elas te vestem e te volatilizam.

Partes. Somos encontrados atrás das portas,
atrás de paredes altas, bolorentas. Tu o sabes —
este é o único meio de comunicação. O tabique de madeira
a separar os quartos transforma-se em vidro. Vês as palavras
cair sobre a mesa nua do porão com um ruído cavo
juntamente com os insetos da noite à volta da lâmpada clandestina.

Os modelos

Não esqueçamos nunca — disse — as boas lições, aquelas
da arte dos Gregos. Sempre o celeste lado a lado
com o cotidiano. Ao lado do homem, o animal e a coisa —
uma pulseira no braço da deusa nua; uma flor
caída no chão.
Recordai as formosas representações
nos nossos vasos de barro — os deuses com pássaros
e com outros animais,
juntamente com a lira, um martelo, uma maçã, a arca, as tenazes;
ah!, e aquele poema em que o deus, ao terminar o trabalho,
retira o fole de perto do fogo, recolhe uma a uma as ferramentas
dentro da arca de prata; depois, com uma esponja, limpa
o rosto, as mãos, o pescoço nervudo, o peito peludo.
Assim, limpo, bem arranjado, sai à tardinha, apoiado
nos ombros de efebos de ouro — trabalhos de suas mãos
que têm força, e pensamento, e voz; sai para a rua,
mais magnífico que todos, o deu coxo, o deus operário.

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Transparência

Vidraças lavadas. Sol de inverno. Uma grande transparência.
Um cigarro aceso — fumega;

Ítaca, não; não mais aventura, mas um vazio bem ordenado

— e nenhuma recusa, nenhuma obediência, nenhuma pergunta.

Lá fora, passa o velho com a sacola às costas. Por entre as casas
vê-se a colina em frente com seus ciprestes, o pequeno pastor
por entre as cadeiras da casa (pois as casas são transparentes)

e a mulher que procura a vassoura que tem nas mãos.
Dentro do espelho uma janela virada ao contrário, somente céu.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho