Em 1948, o francês de origem romena Eugène Ionesco consolidava um importante gênero teatral ao escrever a peça — de um único ato — A cantora careca, levada ao palco em 1950.
A base para o inusitado trabalho havia sido um livro-texto para o ensino da língua inglesa, cujo desdobrar de lições didáticas apresentava um certo casal Smith informando um ao outro que eles, os Smith, eram ingleses porque haviam nascido na Inglaterra, tinham três filhos e viviam em Londres, na companhia da empregada Mary, que trabalhava seis dias por semana na residência deles, na qual o teto era em cima e o chão era em baixo, etc.
Estava ali o involuntário surrealismo verbal pronto para servir de inspiração à mente inquieta do filho de um advogado romeno que emigrara para Paris pouco antes da Primeira Guerra Mundial — a “guerra que iria acabar com todas as guerras”. O pai de Eugène viria a deixar o menino de saúde frágil e a irmã aos cuidados da mãe francesa, para voltar à Romênia dos velhos contos populares, às vezes com diálogos nonsense mais ou menos no estilo da conversa daquele casal “Smith”. E o garoto iria encontrá-los em Bucareste, a partir de 1922, nas idas e vindas da família dividida entre dois países bem diferentes.
O que se tornaria uma peça-cânone do Teatro do Absurdo contaria com mais a cacofonia de outro casal (Martin), bombeiros e demais criações saídas duplicadas do livro-texto ionescamente transformado numa “anticomédia” também extraída das primeiras experiências do jovem Ionesco.
Não havia comédia nas situações bizarras que o filho do catedrático em Leis vivera, algumas vezes, nos bancos do liceu francês e, depois, na Universidade de Bucareste (na qual fez amizade com o lúcido pessimista Cioran e com o místico Mircea Eliade, o criador da cátedra de Religiões Comparadas).
O emprego num banco que o fazia anotar duas vezes o movimento do seu lote de contas de clientes vips não pareceu nada engraçado ao futuro escritor, e o primeiro texto que ele escreveu, intitulado Nu! (Não!), provocou estranheza mesmo na redação da revista literária que o publicou, em 1934. A sua “estética do desconcerto” já estava em marcha desde as brincadeiras domésticas, e continuaria, pela vida afora, com foco central no labirinto da linguagem (“o horror de um labirinto sem centro”), freqüentemente levando da falta de sentido para a incomunicabilidade que pode gerar pequenas e grandes catástrofes do “irracional pleno, numa simples esquina ou numa frenética declaração de guerra”.
A base antes das bases
Por rigor cronológico, cabe lembrar que a base antes das bases do Teatro do Absurdo provavelmente já despontara, no final do século 19, na obra do francês Alfred Jarry (1873-1907), cuja peça Os poloneses trazia o personagem emblemático do “Ubu-Rei”, a criação mais conhecida de Jarry como autor teatral e também de um excêntrico modo de viver (baseado na herança de pequena fortuna). Alfred Jarry está presente no imaginário das primeiras reuniões parisienses do surrealismo, mas a base, eminentemente visual, do seu teatro inicialmente de marionetes, fornece chave mais para “gags” do que para o bem fundamentado teatro que se firma com as obras de Eugène Ionesco, do irlandês Samuel Beckett e dos franceses Arthur Adamov (de origem russa) e Jean Genet, escritas não unicamente para o palco, mas também na forma de romances, contos e ensaios.
Diferentemente de um Gestos e opiniões do doutor Faustroll do “patafísico” Jarry, com eles não estamos no território da comédia, mas da seriedade existencial que põe em cheque a comunicabilidade humana através de situações comuns, do dia-a-dia que “mascara” o sentido dos gestos cotidianamente repetidos de forma no mais das vezes automática.
Na literatura e no teatro do Absurdo, há um fio narrativo que logo se desata, e não uma “história” cômica construída com os itens tradicionais de apresentação-resolução — embora subsista a perfeita observação de trejeitos e maneiras de ser dos senhores e senhoras “Smith” que Ionesco seguiu desenvolvendo surrealisticamente, como num pesadelo que se adensa, desde o começo até a ausência de fim. A ação, esvaziada de sentido “lógico”, apenas ressalta nossas incongruências, à maneira do Tomorrow, o conto de Joseph Conrad que prenuncia o vazio instalado nos diálogos, assim como Bartleby, de Herman Melville, prenunciava Kafka diante do muro bianco-nero do abismo da rotina.
Essa questão, então, dos “antecessores” do gênero do Absurdo poderia ser objeto de lições e ligações inúmeras — algumas talvez absurdas. O que há de claro (e obscuro), pelo menos no teatro, é a mise-en-scène da angústia metafísica no centro da observação da condição humana, insuficientemente assistida da base racional.
“Base racional”? Essas duas palavras não fariam sentido para o célebre romeno de formação francesa que visitou o Recife, em 1982, com o semblante de um Akim Tamiroff ainda perplexo com alguma escala inesperada do avião.
A obra do absurdo
Dezenove peças se seguiram à primeira do mestre reconhecido pela Academia Francesa ao longo dos anos (até 1975). Entre elas, as já clássicas A lição, As cadeiras, O mestre, Vítimas do dever e a obra-prima Rhinocéros — esta suma nada teológica do teatro de Ionesco, encenada exatamente no início de uma década (1960) depois da qual nada seria como antes.
Na pacata cidade que lhe serve de cenário, coisa nenhuma permanecerá igual após a passagem de um rinoceronte por ruas mais que surpreendidas pelo animal inesperado. De onde poderia ter vindo aquela criatura cujo fascínio irá se tornando força de transformação insidiosa?
Rinoceronte começa — como não poderia deixar de ser — com diálogos estúpidos entre os habitantes da cidadezinha para sempre mudada, a partir da passagem do ser estranho que primeiro motiva a intensa curiosidade daquela população de gente comum e indecisa quanto ao rumo de suas vidas sem brilho. Uns se recusam admitir que o rinoceronte não seja um sonho, uma visão; outros o aceitam imediatamente, e passam a discutir o desleixo das autoridades que deixam circular livremente um animal daqueles. Por fim, há quem ignore sua passagem, continuando no mundinho interior da monotonia. Um personagem não se abala com o rinoceronte (Bérenger) enquanto se preocupa apenas com o objeto do seu amor (Daisy) e sente ciúmes do colega de escritório. Quando o animal reaparece em meio aos diálogos de surdos — e seu peso esmaga um gato desprevenido —, a conversa inútil passa a ser sobre a natureza do mamífero perissodátilo: “Bicórnio ou unicórnio? Veio da Ásia ou da África?”…
A besta se espalha pelas casas e surge uma obsessão de Ionesco: os bombeiros (a força vinda “de fora”). As confusões se sucedem e as mentes paralisadas dão chance ao mimetismo que é o centro da peça: aquelas pessoas vão se transformando naquilo que temem, desenvolvendo uma carapaça a mais, perdendo a fala e, pouco a pouco, a humanidade. Em palestra no Recife, o dramaturgo contou que seu ponto de partida foi o relato que lhe fez Denis de Rougemont, escritor francês que se encontrava em Nuremberg por ocasião das impressionantes reuniões nazistas de massa, conduzindo a multidão à histeria que quase contagiava o próprio Rougemont. “Ele se achava já próximo de render-se àquela estranha magia, quando parou para se perguntar sobre que espécie de demônio estaria agindo sobre o seu senso alto crítico”…
Só o tímido Bérenger pretende também resistir à transformação em animal urrante, embora o faça ainda medrosamente: “Eu me defenderei contra todo o mundo… Eu sou o último homem. Não me rendo”. Eugène Ionesco também não se rendeu, e levou a expressão do Absurdo tão longe quanto pôde, antes de falecer no dia 28 de março de 1994, em sua residência parisiense, aos 82 anos. Ou melhor, aos 85 anos, porque o grande romeno diminuiu três anos da sua idade, e durante muito tempo enciclopédias e outras obras de referência deram a data de 26 de novembro de 1912 como a do seu nascimento, por informação do vaidoso autor careca que havia nascido no mesmo dia e mês de 1909. Coquetterie nada absurda…