O saque do museu do Iraque (final)

O bando de saqueadores tagarelas (ou sei lá o quê), conversando sem saber da interceptação pouco interessada da Agência, que não se interessava por antiguidades mesmo que fossem as mais velhas do mundo
01/03/2014

O bando de saqueadores tagarelas (ou sei lá o quê), conversando sem saber da interceptação pouco interessada da Agência, que não se interessava por antiguidades mesmo que fossem as mais velhas do mundo… Como dizem os portugas, isso tinha piada — e vinha transcrito no The Guardian, a chamada esparrenta da capa afirmando que o jornal havia se cercado de todos as garantias da “autenticidade do material de áudio submetido à perícia, etc., etc.” (os ingleses!, cedo no trabalho, escrevendo como se estivessem realmente chochados os filhos: “O que nos faz bem seguros da origem, a partir da idoneidade da fonte e mais a análise técnica do material aqui divulgado com absoluta exclusividade):

— Use a freqüência segura, porra.

— Desculpe. Agora?

— Agora. Pro resto do mundo, só tem iraquiano aí. Onde vocês estão?

— Na sala… acádio-sumeriana, eu acho.

— Acha? Em qual delas? “Acádio-sumeriano” são três.

— Eram. Eles mexeram nelas, pra tentar guardar. Tem umas caixas muito boas, vazias. Não tem nada dentro.

— Podemos até usar…

— Não, não podemos. Tem “Irak Museum”, bem grande. Em inglês e em árabe.

— Então, deixa pra lá. Temos as nossas.

— Uma pena. Estas são muito boas.

— Mas, espere aí. Vocês não terminaram com as salas de Ur, não é possível. Voltem lá, pra ter certeza.

— Tudo da “lista de Ur” já está com a gente.

— A peça “negra” de Woolley, inclusive?

— Também. É uma adaga esquisita.

— Espada. Ou punhal longo, de sacrifício. É isso que está aí?

— É. Mas parece que vai se esfarelar só de pegar nela…

— Não é pra pegar!

— Estamos com as luvas.

— Foi de Abraão, pô. O que você queria?

— Mas fique sabendo: são muito frágeis…

— Alô!

— As duas…

— Alô!!

— É interferência. Tá me ouvindo? Que calor, o ar não funciona.

— Tem muita poeira?

— É, tem. E agora tem mais, depois que derrubamos os capitéis no chão. Alguns espalharam uma poeira fina…

— Vocês estão respirando pó de cinco mil anos, pô.

(Tosse)

— São lindas.

— O quê?

— As coisas de Ur. Os punhais… A harpa com o touro, toda em lâmina de ouro!

— Cuidado com a caixa da harpa, é de madeira.

— E as duas espadas de sacrifício…

— Você disse “duas”?

— São duas.

— Não pode ser. Havia só uma. A de Abraão.

— Tem duas, exatamente iguais.

— Não há cópia, cara. Pouca gente sabia que o museu tinha isso…

— Não falei em cópia. Não tem cópia aqui dentro, eu não sou burro.

— E então?

— Mas encontramos duas. Dois restos de lâminas…

— Woolley só encontrou uma, nas escavações.

— Tem uma legenda, aqui.

— Leia.

— Diz a data, informa o que é… e que “Lawrence encontrou a segunda”.

— T. E. Lawrence?

— Deve ser. Ele trabalhou com Woolley, não?

— Não em Ur. Lawrence trabalhou com Woolley em Carchemish, não sítio das ruínas hititas. Nada a ver.

— Bem, é o que está escrito aqui, “Lawrence encontrou a mais antiga”, e cita: “a espada que conduz à morte, conduz também à pureza”. O que significa?

— Sei lá. Estamos conversando como duas tias velhas, uma em Bagdá e outra no Kuwait, olhando pra mesquitas em forma de cogumelo.

— Temos tempo.

— Não tanto assim. Os outros, estão onde?

— Aqui na sala “acadiana”?

— Quem está nas outras salas?

— O “Moma” e o judeu trabalhando na embalagem das coisas de Ur.

— Se partir a asa de um vasinho sequer, a gente não paga.

— Tamos sabendo.

— E os outros?

— Estão aqui comigo. Vasculhando e conferindo. Moussa está na entrada. Ele fala árabe e está armado.

— Já acharam o “Bocal de Libações”?

— Qual?

— O “Bocal”, de calcário. Foto 16. Todo em relevo, com umas cabeças de animais…

— Ah, já. Os animais inteiros, embaixo, é isso?

— Isso. Terceiro milênio antes de jota cê. Já tem cliente certíssimo. Texano. Pagará o que a gente disser.

— Linda é a estatueta feminina do templo de Abu. Parece uma escultura de Giacometti.

— Ainda mais bonita. Também tem cliente certo…

— Espera um pouco. Parece que…

— Hein?

— […]

— Alô? Alô!

— Oi, cara. É que… teve um acidente aqui.

— O que foi?

— As peças…

— Quais?

— As de Abrãao.

— O que foi, cara? Diz logo!

— Caíram. A gente estava…

— O que foi que caiu? A espada do sacrifício?

— As duas.

— Caíram?! A peça mais…

— Porra, é. Caíram! Aqui tá uma confusão, cara. Tem os iraquianos, também, que ficam enchendo o saco, parece que estão meio arrependidos…

— Os porras estão recebendo muito bem, para fazer a “figuração”. Mas, a espada, cara!, logo a porra do punhal…

— Era só uma lâmina carcomida. Duas, aliás…Viraram quase pó. Muito frágil.

— Que merda. Praticamente foi por elas que montamos o circo.

— Junto os cacos?…

(silêncio do outro lado)

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho