O saque do museu do Iraque (1)

Dentro do museu-símbolo de Londres, pude sentir muito bem o tremor sutil que a grande manchete do Guardian — com o subtítulo, em negrito, GRAVAÇÃO REVELA COMO MUSEU DO IRAQUE FOI SAQUEADO
01/02/2014

Dentro do museu-símbolo de Londres, pude sentir muito bem o tremor sutil que a grande manchete do Guardian — com o subtítulo, em negrito, GRAVAÇÃO REVELA COMO MUSEU DO IRAQUE FOI SAQUEADO causara no interior das salas, naquela quinta-feira. Um arrepio descia entre as colunas da venerável instituição britânica, frisson intramuros, de museólogos chocados… com o quê? Com um saque às escâncaras, um roubo cínico comandado de fora do Iraque, há quase dois anos, por traficantes especializados?

Ali estava um bando de larápios bem informados, cultos, invadindo o mais que importante Museu de Bagdá, desprotegido, enquanto soldados americanos montavam guarda aos poços de petróleo até com tanques.

As faces coradas dos gentis ingleses do Museu Britânico empalideciam, na tarde, e, entretanto, estavam todos cercados pelos produtos de saques e expropriações em nome da ciência, operados, durante mais de 150 anos, por compatriotas ilustres, sábios de chapéus de cortiça e pesquisadores de farda nos sítios arqueológicos da Mesopotâmia e do Egito, da Arábia e da Palestina, da Turquia e da Grécia desfalcada até dos mármores “Elgin” — que vinham a ser a parte principal do friso do Parthenon, levada para qual museu de Londres (adivinhem, por obséquio)?…

Naquele ambiente de claustro da história, todos transpareciam o choque (com um ou outro “oh“ murmurado com vago semblante de discreto aturdimento pelo que acontecera aos tesouros arqueológicos iraquianos), perante a desfaçatez dos ladrões se intercomunicando sob as bombas…

Era desconcertante, para eles, a notícia serelepe, os detalhes daquela conversação objetiva sobre relíquias de extrema fragilidade e preços estratosféricos, tudo no jornal da manhã abalando senhoras delicadas e senhores da reserva técnica do museu londrino abarrotado de roubos sob outro nome. Diverti-me imenso, vendo mudar o ar calmo do dia anterior, enquanto todos aqueles guardiões londrinos da espoliação em nome da “exploração científica” se sentiam inatacáveis no seio do MB inexpugnável, após ter, a querida instituição, promovido o patrocínio de arqueólogos tão brilhantes quanto metódicos no saque disfarçado de tesouros, perpetrado por escavadores notáveis como Layard, Petrie, Evans, Wooley, Carter, T. E. Lawrence (trabalhando, sim, nas ruínas hititas de Carchemish, no único momento feliz da sua vida, na juventude)… E, isso, para citar somente os estudiosos britânicos, embora franceses, alemães, italianos, russos e americanos, tenham também armado acampamento nos vales e nas necrópoles, com as barracas fornecidas de caixas de vinho importado e sombrinhas protetoras para as senhoras trazidas às escavações escaldantes, a fim de admirarem reis que elas jamais teriam defrontado, na etiqueta do mundo antigo. Múmias, túmulos, deuses e sábios, oh, tudo era tão “excitante”, na fase pioneira da arqueologia, que é forçoso pensar numa feira de altos estudos, privada e refinada, levantando lonas de circo em lugares antigamente sagrados que todos pisavam com o espírito entusiasta da ciência positiva e dos espetáculos de magia e homens-elefantes — além de boa bebida e comida quente, preparada nas cozinhas improvisadas que eram parte das instalações de pesquisadores independentes, bem financiados, ou, então, a serviço de museus tão cobiçosos como o britânico, em cuja biblioteca havia trabalhado o bom Angus Wilson (haviam me mostrado a antiga mesa do romancista do finamente trabalhado The Middle Age of Mrs. Eliot).

Senhores, eis aqui os ingleses, malditos hipócritas a exercitarem a sua característica mais tradicionalmente querida — seja na inspeção de algum colégio sombrio, num romance de sofrimento de crianças (pelos quais sentem perverso fascínio), ou seja onde diabo for, sir, foi o que pensei, olhando, nos corredores, as suas expressões compungidas diante da reportagem-denúncia do The Guardian (que afirmava ter obtido a cópia da fita na esteira do desmoronar da ocupação ianque, quando Bagdá provou ser armadilha fatal para os marines de George e os garotos de Tony, todos muito longe de casa).

Nas dependências daquele museu, nosso olhar se tornava reverente para com o acervo monumental de peças — portas, tumbas, esculturas gigantes, vasos, armas, moedas, selos, papiros e mármores antigos — que nada mais eram do que o resultado da expropriação de bens culturais do Oriente (na sua maior parte), organizada para o orgulho da Europa centro do mundo.

Eu não estava tão estarrecido (também comprara o meu Guardian) com o modus da operação levada a cabo pelos traficantes do mercado negro de antiguidades invadindo o Museu de Bagdá como se fosse a “invasão” de uma turba bagdali saqueando o próprio passado (a cínica hipótese primeira, levantada na época, até para “demonstrar” como eram selvagens, no fundo, os muçulmanos da fé que havia iluminado Granada quando Londres ainda eram uma espécie de pocilga escura). E eu não podia estar espantado em qualquer grau de surpresa, etc., atento, que sempre fora, para o simples fato de que não existia museu europeu capaz de “olhar nos olhos” para ladrões de túmulos, e, naquela manhã, a lamentar a desgraça do Museu distante, trazida por uma fita franca de cinismo quase igual ao da história da instituição na qual trabalhavam aqueles funcionários devotados à proteção dos roubos trazidos para a capital inglesa do século dezoito em diante, em procissão majestosa de saques esperando, nas docas, pelo transporte para a dignidade das austeras vitrines.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

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