Para melhor compreender — ou tentar compreender — o que aconteceu em Amarna, é preciso dar lugar, agora, aos outros atores que participaram no drama: uma multidão de figurantes recuados para trás do palco, mas cujo coro se ergue, no fundo, preconizando o desastre, com sinistra suavidade.
Voltemos a olhar para um mapa. Nele, o Egito da 18ª dinastia resplende, do Vale do Nilo às cataratas núbias, durante um período largo (1550-1070 a.C), como o maior império do seu tempo. Os reis predecessores de Amenófis III haviam conquistado terras e alargado a influência do país. O faraó é um alto deus na Terra, portador solene das Duas Coroas onde a luz do Disco Solar reflete a sua glória, e qualquer governante estrangeiro buscaria se compor com o poder daquele rei movendo-se — ou não se movendo, quase — como um grande peixe dourado num lago de água pesada. E não se vê, à superfície, a “terceira” coroa que mantém o mais alto soberano da Terra sob a vigilância estreita de uma cabeça lisa no recesso dos templos, um crânio rapado sem cabelo que usa a coroa invisível do clero mais poderoso daquele tempo: a casta, muito rica e antiga, dos sacerdotes de Amon. (O mero título oficial do sumo-pontífice de Amon é bastante para se ter idéia da importância do personagem: “Chefe dos mistérios em Karnak, soberano da terra inteira, a Boca que faz com que haja abundância nos templos, admitido a entrar no Céu para ver o que lá existe, Diretor da dupla Casa de Ouro e Diretor da dupla Casa de Prata”.
Mesmo que não se possa duvidar da crise mística que levou à fundação de Amarna — porque o fervor religioso é ainda transparente dos poucos textos que chegaram até nós da “heresia” do rei Akhenaton — trata-se de reconhecer, 33 séculos depois, as razões políticas que lhe sobrariam, de resto, para fazer-se de reformador. Como governante, ele sabia que a “terceira” coroa rivalizava, quase, com a sua dupla coroa dinástica — e age também de acordo com a percepção de que a reforma religiosa tem que ser também um golpe rude no clero de Amon.
Preparado para governar pelo sábio Imhotepe, filho de Hapu — mestre mais tarde divinizado —, o jovem príncipe reconhecia, certamente, a grandeza da sua dinastia e o valor do poder indiviso que um verdadeiro faraó devia ter, por direito das insígnias, de Filho do Sol, que seus braços cruzados seguravam. De posse da regalia, Amenófis IV resolve descruzar os braços em face dos tentáculos do poder clerical — e por isso se pode dizer que não foi propriamente contra a teologia amonita que ele arremeteu, com as suas inovações anunciadoras do novo culto central, servido pelo rei. Ele não se lançou, como se costuma pensar, contra o princípio antigo de fé que existia em Amon; Akhenaton não antipatizava com o deus, especialmente, é o que se pode supor — pela própria tradição que o culto representava desde os tempos da 12ª dinastia. Desde essa época, e passando pelo período da invasão dos hicsos até chegar ao Novo Império, já se contava quase meio milênio do estabelecimento do culto de Amon, quando Amenófis IV resolve mudar o seu nome em homenagem a Aton. Tal homenagem a um “novo” deus ignora, portanto, talvez o culto mais forte que já tantalizara a alma egípcia, exercendo influência sobre todos os aspectos da vida do país. Mesmo já separado do seu conteúdo teológico original, hipertrofiado e incapaz de inspirar forças iguais às que aportaram ao Médio Império, Amon ainda era a devoção mais forte e poderosa, desde quando pudera operar, como culto, uma síntese — necessária — dos deuses mais antigos, assumindo a posição central, conforme já se disse, no panteão egípcio. Naquela altura, o deus fora capaz de renovar talvez a força declinante da monarquia, por volta de 1780 a.C (uma rainha — Nefrusobk — no trono, dá bem a medida de problemas com a família real, após o reinado de Amenemhet IV), etc.
Antipatia
O jovem co-regente de Amenófis III, o recém-investido rei Amenófis IV, era certamente um crítico do deus caduco, mas não chegava a ser, com certeza, um inimigo do deus em si mesmo. Pode ser dito, talvez, que não fosse seu adepto, não professasse a crença no poder de deus “acima” dos outros deuses, mas sua antipatia tomava o caminho do interior dos templos de Amon — e não se dirigia contra o náos (o altar), prioritariamente. O que ele rejeitava estava nos recessos do complexo político-religioso de Amon, cujo apetite pelo poder usava o divindade como instrumento, cajado e apoio da ambição dos sacerdotes, desde há muito tempo. Por exemplo, no caso da ascensão da rainha Hathshepsut, no Império Novo: essa sucessão tivera a participação, direta e ostensiva, do clero de Amon, no papel representado pelo príncipe-consorte, um sacerdote ligado ao Colégio do Oculto (Amon), personagem que, depois, se sentiria aumentado em forças o suficiente para destronar a esposa, etc.
Para Akhenaton, nem seu pai glorioso, o grande Amenófis III, soubera — ou quisera — limitar o poder (paralelo) da casta dos sacerdotes de Amon, e havia até contribuído, na verdade, para aumentar os poderes do seu sumo-pontífice, ao torná-lo uma espécie de primeiro ministro. É pelo menos assim que deve ser entendido o título o “Mestre do Duplo País” (o faraó) que concede ao chefe do culto do deus tebano: “Gerente de todos os trabalhos do Rei, apto a executar os desígnios do Egito!”
Não é de estranhar, portanto, que Akhenaton, ao chegar à idade de co-reger o “Reino Amado dos Deuses”, ao lado do pai, ele tivesse plena consciência dos dois caminhos que poderia trilhar: o de sempre, palmilhado por Amenófis III (e outros faraós da 18ª dinastia), conciliando-se com o “poder paralelo”, e aquele caminho “individual”, buscado com um olhar místico e político ao mesmo tempo, no sentido de uma nova síntese em torno de um deus que não estivesse poluído, esvaziado e rebaixado a um instrumento na mão dos sacerdotes. Na sua alta posição, ele podia ver claro: o culto de Amon se tornara uma fé laicizada e semiprofana, ao prodigalizar pura superstição como saber religioso e se torna quase uma mera instância de todos os pedidos e de todos os assuntos, como intermediário de benefícios e negociador de apelos com quaisquer fins, por todos os meios e a vários preços, desde o vasto comércio de amuletos às preces pelo Ka dos mortos que não descansam. Mais do que tudo, oferecia a palavra do Primeiro Profeta de Amon, que se tornara oracular, ao longo do tempo, e imprescindível na legitimação do próprio Trono.
Inadmissível
Portanto, tenhamos em mente esta distinção sutil: não é tanto o deus Amon que choca, teologicamente, o espírito do futuro reformador. Não é essa antiga divindade (uma das oito que eram cultuadas em Hermópolis, no final da 11ª dinastia), assimilada a Ra — mas logo se tornando assimiladora deste — que parece inadmissível para o profeta de um deus absoluto.
Complicada pelos séculos — e pela malícia dos seus servos — a grandeza original da síntese de Amon já não podia chegar, vinda da 12ª dinastia, a um “moderno” jovem faraó do esplendor da décima oitava linhagem de reis orgulhosos do seu poder. Após quase meio milênio do estabelecimento civil do deus de Tebas, o que um homem como Akhenaton pode ver é que lhe pedem para depositar seu orgulho (e sua exigência intelectual) ao pé da imagem de uma carneiro indiferente (que era uma das formas do deus). Ele devia compactuar com um culto que recolhia a alma alegre do “País Amado dos Deuses” no altar do Oculto, constrangida em preces, anseios de proteção, adivinhações da sorte e das ocasiões de guerra, intermediadas por padres que prosperam e afundam em grosseria de crença.
Para Amenófis IV, as dádivas dos crentes e as contribuições do Estado — que foram a origem do dízimo, pois perfaziam dez por cento dos tributos e tesouros reservado para os deuses estatais (Amon, de Tebas, Ptah, de Mênfis, e Ra-Harakhty, de Heliópolis) — deveriam ir para um deus despido dos atributos e necessidades mais próximas da comum humanidade pedestre. Um princípio abstrato encarnado numa forma, num “canal” visível, mas não um totem servido — como Amon — por quatro profetas (ou grandes sacerdotes), toda uma corte de oficiantes e portadores de oferendas, um alto mordomo e mais os superintendentes de armazéns, celeiros, oficinas e estaleiros providos de um pequeno exército de ourives, escultores, arquitetos e forças de segurança, etc.
Esse “estabelecimento civil” do deus surgia como uma deformação (e ameaça) que valeria inibir, para quaisquer dos seus antecessores cuja vontade pudesse se ter afirmado por sobre as adulações tebanas, da corte e da casta religiosa. E mais: o Egito nunca tivera profetas “descontentes” apostrofando contra deuses e governantes herdeiros do fundo de concepções cosmogônicas que vale observar, de mais perto, ali no Vale lodoso das margens do Rio que aquietava os espíritos… O Nilo descido dos céus para dar a felicidade do príncipe e a felicidade do escravo, nos muitos salões separados da vida — por decisão dos deuses primordiais identificados com forças que não reconheciam a individualidade posta em ação para nada que não fosse a confirmação do destino.
Só o vivido
As sínteses religiosas egípcias não parecem ter vindo, jamais, daquela necessidade de “revelações”, presente em outras culturas. Aparentemente nascidas do mesmo limbo das religiões mesopotâmicas, anatolianas e outras, as sínteses do Egito no entanto operaram sobre algumas necessidades talvez mais orgânicas — porque a “dádiva do Nilo” só acreditava naquilo que concordasse com o que o país já houvesse vivido, digamos assim.
O inconsciente coletivo — que existia antes de Jung, claro — fornece aqui um caso, peculiar, de ressonância coletivíssima, fomentando (e fermentando) idéias cuja formulação coincide com a superestrutura de uma civilização que, por exemplo, preferiu permanecer na última Idade do Bronze (“preferir”, aqui, é um verbo que alude às direções profundas as quais toma, em avanço ou em recuo, todo o conjunto de uma cultura).
O Egito antigo durou tanto — não o esqueçamos — regulado por ciclos e por mudanças periódicas tão precisas e tão pontuais na vida daquela terra (com a sua medida cósmica para todas as coisas, o “relógio da água” trazendo as enchentes em agosto, sem falta, e também estios pontuais, no cume do nível do rio, etc,), que eu seria tentado a dizer que Akhenaton foi uma “anomalia” possível de se prever, no final da 18ª dinastia, se houvesse certas condições de adivinhação (nada adivinhatória) no simples manejo dos fatos cuja lógica profunda podemos supor — muito mais do que afirmar, com base no conhecimento, mesmo precário, da reforma acontecida em torno de 1350 a.C.
Examinado aquele mapa, agora o afastemos com a imaginária mão que, no tempo, se estende para um colosso deitado. E esse colosso é o país quieto, “repousando” no leito decorado com as imagens de Ísis e Néftis, um velho senhor no descanso das duas coroas pesadas sobre uma calva raspada à lâmina. Com a mão imaginativa, tentemos levantá-lo da cama — onde ele se deitou para continuar dormindo. É o mesmo sábio Egito imóvel!, velho como o tempo e nele sonhando acontecimentos de mais de mil e duzentos (naquela altura em que surge o deus de muitas mãos, Aton presente no Disco)… desde quando pode lembrar do caos da “Primeira Vez”, idade primitiva da infância saindo do limbo da pré-história. E esse Egito, que cochila sobre a cama de ouro do trigo, olhando para toda a extensão do corpo estendido ao longo das águas do Nilo, talvez pudesse “calcular”, num dos recessos do Quarto de Sabedoria (que depois se ampliará, no futuro, em salões e mais salões dourados do que chamaremos por nomes tão pedantes como “geopolítica do protomessianismo”), talvez pudesse calcular que os seus dias de Grande Senhor sonhoso estão contados, na cama dourada de pés de leoa assentados no lodo precioso, sobre uma vida dentro dos saberes do mundo pré-científico.
Sombra previsível
Nesses recessos, sob a lâmina de um céu que não pisca — e os véus de gaze do “prodígio” sem ciência —, ali onde a mente e a alma podiam obter explicações (ainda) do maravilhoso ou do “acaso aprendido”, naquela hora branca, o Egito talvez pudesse ver a sombra do rei Akhenaton como uma sombra previsível, e suas idéias como uma forma evolutiva das sínteses criadoras das quais o país estava esquecido. Porque Amenófis IV trazia, ou queria trazer, por fim, uma espécie de nova “moral” destilada do fundo cosmogônico (sobre o qual o “velho homem” da nossa imagem repousa a cabeça num sono quase sem sonhos — quando dorme ainda ninado por sons da remota infância cheia de contos nos quais não havia “moral” nos mitos formadores)…
A que mudanças ele pudera assistir desde quando se deitara, no Delta, para o descanso da mais longa das culturas? Ora, a “civilização sem mudança” não mudava para obter nada que não viesse no ritmo simplesmente imemorial das coisas que “já haviam acontecido”. É o Egito da “Primeira Vez” — ainda lembrando-se do acordar do primeiro sono, na cama dura da História.
A incapacidade de ser, como o grego — retilíneo na lâmina do pensamento que atravessa o céu — estabelecia mais modelos de imobilidade do que argumentos “dialéticos” capazes de produzir uma mudança no lago do espírito. E esse era o verdadeiro inimigo do país encanecido: sua crença numa eternidade semelhando um longo dia imóvel no espelho de cobre da civilização que, por algum motivo, não chegou — ou não “quis” chegar — à Idade do Ferro.