“Você está disposto a viajar trezentos e sessenta e cinco quilômetros abaixo do Nilo, e andar, no último trecho, possivelmente de jipe ou no lombo de burro, para alcançar um círculo de montanhas redondas, onde só há umas pedras para se ver?!”
Respondendo que sim, insistindo na importância, para você (e até para ele, o jovem egípcio que lhe pergunta se acaso não dispõe de uma “camisa de Kaká”, na bagagem vinda do país do futebol), daquele lugar sem destaque, daquelas montanhas aplainadas pelo vento, numa depressão inóspita — você terá, talvez, algumas chances. E, numa manhã de céu azul de gaze — tocado pelo ápice quase irreal da grande Pirâmide — quem sabe estará partindo, afinal, a caminho da mais abandonada das ex-capitais do Egito, preservada pelo menos da indiferença que nunca ultrapassa do maciço de Gebel Abu Feda, ao norte do qual se oculta o lugar de Amarna.
Além da beleza natural — e solitária — do lugar, que se conserva quase intacta, não há muito que ver, de fato, de uma cidade abandonada apenas doze anos depois da sua construção rápida (e que era já ruína, na antiguidade).
Apesar de capital — com oito quilômetros de comprimento por um quilômetro e meio de largura máxima —, ela não foi erguida com os materiais mais nobres, pois não havia tempo para levá-los até tão longe de Tebas, a capital que ela devia substituir. Tijolos cozidos, calcário e alabastro foram os materiais mais usados nas obras sem nenhum trabalho de cantaria, tocadas com uma urgência que ainda emerge do cenário de uma crise mística e política. Pouca pedra. E muita pressa em levantar, em menos de dois anos, basicamente uma cidade principal, com o Palácio, a residência real unida a ele, os templos (dois), o subúrbio setentrional e uma área também urbana, ao sul, onde havia o Palácio das Termas, a dois quilômetros do que podemos chamar o “centro”, ao longo da “rua do Rei”. Dessa “rua”, partiam as principais (e sempre largas) avenidas da geométrica Amarna. Tal concepção também contrariava, em parte, o estilo monumental e pesado que está associado às capitais egípcias e, mesmo, aos templos funerários, etc.
O seu traçado — que conhecemos — é o de uma cidade nova, verdadeiramente. Os “riscos” dos mestres-de-obras, preservados no gesso escondido dos alicerces dos principais edifícios amarnianos, eram abertos, leves, claros. Com algo de “aéreo”, porque devia ser a Casa de um deus abstrato, que se representava, indiretamente, pelo Disco Solar. (É importante fixar esse “indiretamente”, pois quer dizer que Aton não era visível, nem poderia ser.)
Contra o mundo vulgar
Sem nada da grandiosidade — aqui e ali, até desproporcional — que caracteriza a santuária arquitetura egípcia, neste lugar, nessa cidade-santuário, os magros vestígios de certo modo se opõem, em espírito, às adiposidades, ao núbio engordar da luxuriosa visão que se associa à corte egípcia, geralmente. Essa cidade foi levantada quase contra ela. Ou, pelo menos, contra o mundo vulgar — desde sempre presente e já aqui um vidro opaco fazer atravessar de claridade, sonho na água do sono entre a manhã e a madrugada das visões de transcendência, que se inauguram.
Aqui é o lugar da primeira ascese de um governante em busca dos triunfos do espírito, o cenário da sua paixão e da sua derrota e, se não da sua morte — sobre a qual pouco se sabe — pelo menos do fim irremediável daquela sonho. (O faraó terá sido levado para morrer em Tebas, como castigo imposto pelo triunfo, final, do poderoso clero desprezado?)
Ele foi o responsável pela mais grave dissidência que feriu o colosso sem fissuras, na religião. Amarna foi o lugar da consumação de sua afronta ao deus principal do Egito, aos seus oficiantes e aos beneficiários de um culto que, em menos de meio século, se “estabelecera” no centro do poder teocrático — até surgir Amenófis IV.
Houve aqui a paixão de uma ascese monoteísta sincera — na defesa de um único Deus verdadeiro contra a proliferação de deuses — e nesta nova capital da nova divindade (Aton) também se deu uma reforma política, uma insurgência (a primeira) do Trono contra o Altar. Em Amarna — forma abreviada do que não é o seu nome de origem — um deus único se tornou o centro do culto oficial, tendo o rei como seu profeta. Akhenaton. O-Horizonte-Radiante-de-Aton (Akhenaton) foi como ele chamou a capital que se transferiu de Tebas para aquela depressão de terreno cercado de montanhas polidas pelo vento, ainda hoje propícia à ascese, à contemplação, radical, da equação céu-e-terra, altura-e-planície, silêncio-e-ruído.
Cidade inacabada
De volta à tranqüilidade desde há mais de três mil anos, Amarna não parece ter sido o cenário de uma revolução espiritual tão profunda que, para se expressar completamente, desceu até mesmo dos altares nos quais passavam a ser realizadas oferendas e gestos rituais diferentes da liturgia de Amon e outros deuses. Erguida para precipitar acontecimentos importantes na vida do Egito, a própria cidade permaneceu inacabada, pois o vigor místico do rei não admitiu esperar, ao que tudo indica, pela conclusão de todos os projetos urbanísticos traçados para a breve capital in progress. Ansioso por consumar fatos pela via mágico-administrativa, ele logo promoveu a mudança da corte, proclamando a fundação de Amarna já no quarto mês da estação de inverno do sexto ano do seu reinado, quando já dera início a certas mudanças que “ameaçavam” o deus Amon (sem que talvez houvesse uma percepção muita clara — por parte do clero de Amon — do que significavam alguns desses gestos e decisões, menores, do jovem rei Amenófis IV).
Assim fora com a troca do nome “Amenófis” — que significava Amon-Está-Satisfeito ou O-Oculto-Está-em-Plenitude. Quando ascendera ao trono, o antepenúltimo rei da brilhante 18a dinastia resolvera trocar seu nome real, mudança cujo valor simbólico tinha algum peso como “operação mágica” capaz de alterar a natureza de uma determinada pessoa ou coisa. Amenófis IV passara a se chamar Akhenaton, ou O-Espírito-Atuante-de-Aton — e isso representava uma quebra das prerrogativas divinas de Amon, o deus que morava também nos nomes dos soberanos da longa linhagem dos Amenófis.
Fora uma “originalidade” não desprovida de importância. Uma estela da época amarniana inicia assim seu anúncio dos atos palacianos (de Tebas, ainda), relatando o sentimento do jovem monarca a respeito da homenagem prestada a um novo deus presente no nome do governante: “Agora o meu nome vai bem com Aton”…
Esse deus era Aton, e já existia reverenciado na fulguração do disco do sol, ora como aspecto complementar de Ra (a divindade de Heliópolis), ora expressando seu atributo máximo, do modo complexo conforme a teologia egípcia invertia e transferia, desde os primórdios da antiga religião solar, assimilações de uma divindade a outra, sucessivamente. Um culto passava a ter ascendência sobre outro, ao longo dos séculos da civilização mais longeva do Oriente Próximo — e o de Amon era hegemônico há cerca de quatrocentos anos (quando veio a sofrer a ameaça amarniana). Desde a 12ª dinastia que Amon-Ra começara a ser cultuado no lugar central do panteão, ao fim de assimilações sucessivas. Não se pode tentar esclarecer tais trocas e transformações divinas (que aconteciam de modo natural, ao longo das dinastias e suas preferências processando-se com a lentidão dos negócios de poder e magia, numa civilização quatro vezes milenar), sem ter uma alguma visão do quadro confuso, juncado de nomes e atributos dos deuses, da religião do Egito. O assunto de que tratamos aqui — a personalidade central de uma tentativa de reforma político-religiosa na 18ª dinastia egípcia — certamente não comporta que nos detenhamos, especialmente, sobre a complicada teologia que se foi elaborando durante lapsos de tempo tão formidáveis quanto os que se conta na civilização egípcia — na qual vemos Amon inicialmente como uma das oito divindades adoradas em Hermópolis (outro centro religioso). Desse panteão lateral, o deus foi “subindo” para a categoria central, em Hermópolis, meio século antes do advento de Aton como deus central que deslocava Amon, Ra, Ptah, Thot, Knun, Nut, Geb, Maat, Hathor, Hapy, Mut, Hórus, Seth, Ísis, Osíris… e outros. É uma vasta sucessão de nomes divinos, que extrapola do foco central deste livro — no qual, será suficiente, por ora, que tenhamos presente o essencial do mundo religioso egípcio, em 1400 a.C: nesta altura, o deus então principal e determinador da sorte do Egito desde a ascensão do seu culto (e clero, claro) era Amon-Ra.
Ainda mais radical
Quando Amenófis IV passa a se chamar Akhenaton, a novidade tem um sentido político-religioso que irá se tornar ainda mais radical naquele momento em que a exigência mística do “novo homem” — que é o rei — exige uma nova capital “construída num lugar que não pertença a nenhum deus ou deusa”, segundo outra estela real encontrada na cidade.
E a decisão sobre o lugar recaiu nessa planície ao norte, a cerca de trezentos e vinte e cinco quilômetros da velha Tebas, a meio caminho desta e da velha Mênfis (também ex-capital). A nova capital duraria cerca de doze anos — ou um minuto na longa história egípcia — mas suas rasas ruínas (que se tornaram, literalmente, um “Horizonte” onde existiram retos e altos edifícios recortados contra o céu sem nuvens) ainda continham os únicos documentos autênticos da revolução amarniana, quando aqui começou a escavar, em 1891, o arqueólogo inglês Flinders Petrie. Também o busto, famoso, da rainha Nefertiti veio desse traçado de pedras esquecidas, assim como outras peças que se espalharam pelos museus do mundo. E vieram de Amarna também as tabuinhas de barro cozido — encontradas, em 1887, por uma velha nativa de Et-Till (pequena vila das proximidades de Amarna), em tal quantidade que a princípio foram tomadas como falsas. O extraordinário achado da sebakhin traria à luz parte da correspondência dos países estrangeiros, dirigida ao rei Akhenaton, no seu novo palácio. Longe dos arquivos de Tebas, a maciça correspondência de argila fora se empilhando, quase como lixo, depois de copiadas pelos escribas (no mais prático papiro). Tão ou mais importantes do que o busto da rainha que deslumbra, magnífico, os visitantes do Museu de Berlim, as cartas diplomáticas se tornaram, na verdade, a única fonte direta que possuímos, até agora, dos assuntos externos de Amarna (principalmente no que diz respeito ao período crítico de declínio, quando o delírio místico do seu fundador talvez tenha chegado ao ponto desagregador característico de toda e qualquer recusa do mundo).
O que aconteceu aqui? — é a pergunta que se coloca, acima de todas.
Quando Amarna foi levantada, era o Egito o maior império conhecido. Por volta de 1400 a.C, a terra dos faraós dominava colônias e territórios vassalos desde a costa síria até a terceira catarata, na Núbia — mantendo como amigos o país de Mitanni e a Babilônia (embora a ameaça hitita estivesse a coçar o dorso do portento africano que, de vez em quando, se dava ao trabalho de enxotá-la com orgulhoso enfado).
Esse, o país que Akhenaton recebeu do seu pai, Amenófis III, e que ele já conhecia da co-regência exercida antes de suceder, finalmente, ao celebrado faraó que alguns chamaram de o “Luís XIV do Egito”. Parece certo que o grande rei chegou a ver até o sexto ano do reinado do filho — e essa longevidade envolve mais do que o “simples” problema da co-regência, como progressiva transferência de poder (que era a prática corrente na realeza egípcia, com a finalidade de iniciar os príncipes, sempre que possível, numa sucessão tranqüila).
Reforma radical
Haveria, então, um sólido rei silente — num tipo de consentimento tácito, no mínimo — no fundo da paisagem de reforma radical defendida pelo príncipe-herdeiro. Estamos falando de um governante que reinou durante 35 anos, o homem que conhecemos de estátuas colossais e tranqüilas. Um rei, um faraó esclarecido o suficiente para tolerar, pelo menos — senão estimular — os arroubos de um reformador que ele próprio gostaria, talvez, de ter sido.
Nunca se saberá, ao certo, sobre a extensão desse entendimento que, em princípio, não pareceria possível. De um lado, o faraó que se autodivinizou durante um longo reinado (mais de manutenção de território do que de conquistas, e mais de atração dos povos estrangeiros do que de alianças, forçadas, com países temerosos do Egito), e, do outro, o seu filho, breve senhor de um turbulento período, Akhenaton, herdeiro de um “universalismo” inegavelmente praticado por Amenófis III — que se correspondia, com os reis “bárbaros” usando os seus idiomas difíceis, por hábil cortesia.
Teria ele vivido, de fato, até o sexto ano do reinado de Akhenaton, estava vivo Amenófis III, seu pai. Questões, então, que necessariamente se colocam: sua presença tem o condão de tornar aceitáveis as “originalidades” religiosas do filho? A idéia de um pai que, no mínimo, usa o silêncio — e a falta de “reprovação” — aqui se alinha, frente ao leitor impaciente, levado para um problema mais que longínquo. Um consentimento, implícito, da revolução teológica a que Akhenaton dá início, com graves repercussões políticas. Seu herdeiro era, agora, não apenas um co-regente, naquele sistema que favorecia o jovem príncipe, aliviava o faraó e também era útil para o Estado — pois toda monarquia tem um profundo senso do Estado, maior do que nas repúblicas, talvez — e, aqui, era o País o mais beneficiado com a energia de um co-regente na condição de faraó já “em exercício”. São os passos de antecipação da reforma mais profunda ocorrida na mais “imóvel” civilização da história: a egípcia.
O cenário, de certa forma, está montado. O ator secundário — o velho faraó — se retira. O ator principal, Akhenaton, assoma ao palco, acompanhado por duas mulheres: Nefertiti e Tiy, que vão desempenhar papéis ainda mais obscuros do que aquele de Amenófis III no destino do filho.