O Diário de Nohara (2)

Nohara relata (no “Diário” estranhamente sem datas) sua chegada ao Brasil, desembarcando no porto do Rio de Janeiro
Ilustração: Rettamozo
01/09/2011

“A luz incomoda. Bananas e peles negras suadas, entre recortes contrastados em linhas retas e curvas. Europeus apertam os olhos mesmo por trás de lentes escuras. Odores sobem como se as suas narinas houvessem descido até o fundo de cloacas de alguma forma iluminadas pela espécie de clarão que há igualmente nos cheiros adocicados e, de alguma forma, pungentes sem suavidade, assim como um fruto podre pode se anunciar, num cesto enganador, apenas pelo aroma passado, pelo fedor da putrefação começada debaixo das cascas ainda amarelas. É um lugar para o pintor e o sanitarista, o escritor e o naturalista capaz de não apertar o nariz nem desviar a vista.”

Quando ele chegou? Foi, certamente, no verão — e talvez não pensasse em se demorar.

Wilhelm continua a descrever o outro planeta do Brasil chegando-lhe pelos olhos e pelo nariz pálido, enquanto balança — sabe-se lá por que — dentro do rebocador (talvez quisesse fotografar alguma curiosidade dos práticos?).

O ano deve ser 1936 (por que alguém manteria um diário ignorando o dia, o mês e o ano?), o mês é impossível determinar — Federico Garcia Lorca foi chamado para caminhar e morrer, fuzilado, numa manhã de agosto de 1936 iluminando, com um azul de dedos suaves, as janelas do aquartelamento da Guarda (enquanto o general Franco, longe dali, erguia o braço, na saudação fascista sem desodorante, para o desfile das tropas marroquinas de facas afiadas). A morte assim, em escala, parecia longe daquele Rio, afastada daquelas bananas e daqueles negros brilhosos curvados sobre bagagens e gorjetas superadas pelas moedas que os turistas lançavam (onde ele viu isso?) “para os meninos que mergulhavam na pesca do dinheiro feio”.

Nohara parece ter escrito um “diário” para não ser situado nem entendido com facilidade. Devo avisar, desde já: há essas anotações do dia-a-dia no limbo das datas, e há aquilo que ele próprio intitulou O anjo pardo, espécie de relato pessoal de uma aventura amorosa abaixo da linha da água clara, da cor e da raça do qual Nohara está tão consciente, ao chegar neste país de jaulas e gaiolas, pássaros presos e animais à solta como estavam os carabineiros nacionalistas levando o poeta para o matadouro enquanto ninguém ainda sabe disso, e Nohara desembarca de óculos escuros, reprimindo um pouco a respiração que capta os cheiros tão menos fortes do que a mistura de cabelo e carne queimada dos campos a caminho de serem inaugurados na Alemanha do Prof. Dr. Otmar Freiherr von Verschuer, médico destacado nas páginas internas do jornal alemão que Nohara traz debaixo do baixo, tornando ligeiramente encardida a sua roupa onde o tecido claro se mancha da tinta preta dos caracteres góticos anunciando que o Dr. Verschuer declara estar o seu país “na vanguarda da pesquisa dos genes e das raças” (de 1936 até 1942, ele será diretor do Instituto do Terceiro Reich para a Herança, a Biologia e a Pureza Racial, em Frankfurt, no qual inspirará o aluno Josef Mengele a fazer as “experiências”, com gêmeos etc., necessárias para alimentar as suas próprias pesquisas sobre a transmissão hereditária de defeitos oculares; Verschuer também conseguiu financiamento para o seu protegido, indiscutivelmente, nestes termos assinados pelo próprio diretor do Instituto: Meu colaborador e ajudante no presente estudo é meu assistente Mengele, médico e antropólogo. Presta serviços como Haupsturmführer e médico no campo de concentração de Auschwitz, onde — com autorização do Reichsführer S.S. Himmler —, leva-se a cabo um estudo antropológico das diferentes formas de grupos raciais no campo de concentração. As amostras de sangue serão enviadas ao meu laboratório para serem objetivo de pesquisa)…

Tudo isso ainda vai acontecer, e, neste momento, Wilhelm K. von Nohara — que não é médico nem será acusado por crimes de guerra (que eu saiba) — desembarca no porto do Rio de Janeiro, num mundo de azáfama aparentemene inocente debaixo da luz (“muita luz”). E, entretanto, parece uma noite irisando de partículas de giz e prata todas as coisas que ele vê sob as lentes escuras que eu estou a imaginar — porque só há as fotos do seu livro publicado em 1938, e nenhuma o mostra para sabermos como se parecia, efetivamente, esse homem quase sem história, essa sombra que não parece ter permanecido, desde aquela época, o tempo todo aqui entre as rudes claridades do Brasil. Pois não foi neste país que Wilhelm Nohara conheceu Josef Mengele, isso eu posso afirmar com quase certeza, embora o primeiro tenha sido fundamental no…

Agora, uma pista para Nohara
Será Nohara o “K. Nogara” referido entre os fotógrafos assistentes de Fritz Lang nas filmagens de Der Müde Tod?

Isso tem algo a ver com “Lola Lola”, de algum modo, pois Marlene — a alemã — foi, recordemos, a jovem atriz escolhida para representar a cantora de cabaré preterindo-se uma lista enorme de atrizes experientes e belas, entre as quais uma amiga (ou mais que amiga) de Nohara, a atriz Lil Dagover, aqui já referida.

Lil era, talvez, a preferida de Lang (na Alemanha pré-nazista — que tem a chave de tanta coisa do que viria a acontecer depois, com alemães espalhados em fuga ou no cumprimento de certas missões). Exatamente a moça que ele descreve sentada nos sets de filmagens, as pernas belíssimas cruzadas, uma piteira — ”célebre” — na boca e o falso ar de “colegial de férias num terraço dos Alpes” que Sternberg, justamente, queria arrancar da jovem de todas as jovens que se apresentaram para o papel de Lola.

Nohara se refere a Lil Dagover nestes termos de admiração no mínimo indisfarçada:

“Ela adorava filmar, representar para as câmeras (o que fizera desde quase criança, no rasto de calças de flanela e botas brilhantes), e também representar para as equipes, nas horas vagas, uma mulher jovem com um passado para contar (havia ‘caso do rapto’, na fase muda)… Lil Dagover! Esse nome já aparecia nos cartazes originais de O gabinete do Doutor Caligari. Depois, ela fez A morte cansada, em cujas locações teria acontecido o tal rapto, segundo o seu relato dramático: ‘Em 1920, quando eu fazia Der Müde Tod, fui seqüestrada. Era nova e bonita. Meu papel era o de Junge, a recém-casada disposta a demonstrar seu amor pelo jovem esposo nos jardins suspensos de um oásis, nos mármores enlameados de Veneza e nos confins da China de papelão dos estúdios’… Ela nunca terminava a história — e sempre a começava de maneira diferente.”

Por causa de Nohara, fui pesquisar a vida de Lil, e fiquei sabendo que ela fez uma montanha de filmes. Aqueles melodramas de alpinismo de Leni Riefenstahl superaram, na época, a altura da fama das obras artisticamente mais empenhadas às quais a Dagover emprestou o seu talento — muito maior do que o de Leni, pelo menos como atriz. E Lil Dagover não entrou em confraternização com os nazistas, nem serviu à propaganda do partido, conforme aconteceu com a sua rival de A lâmpada azul, filme adorado por Hitler. Apesar disso, Lil ficou na Alemanha, sofreu o grande desastre como qualquer cidadã dependente do mercado negro para comprar comida e meias, ao invés de partir com Fritz Lang, que lhe teria dito (não estou inventando): “Você terá notícia, não sei quando, não sei onde, de Fritz Lang fazendo um filme chamado A moça branca da Índia, baseado naquele seu rapto bem nos nossos narizes. Mas não deixarei revelarem a fonte”…

A piteira
Dagover foi a estrela de A morte cansada e outros sucessos do diretor que se aclimataria bem em Los Angeles, apátrida como Lil jamais se sentiria, longe das montanhas que Leni também não abandonou, as duas separadas pelas águas do rio claro e do rio turvo da biografia interrompida. Lil parecia uma sílfide maquilada, uma aparição dos contos de Hoffmann para as lentes propícias aos sonhos e aos pesadelos enevoados que inspiravam os cineastas alemães mais típicos – dos quais Fritz Lang se afastava, um pouco, pelo tom intimista e a vocação “internacional”, o gosto por filmar tanto na tradição européia quanto no meio do folclore americano, recente, do film noir e do western, de modo que Lil caiu em relativa obscuridade — enquanto Leni ascendia ao Olimpo do Nacional-Socialismo. Talvez Lil esperasse passar aquela idade de trevas artísticas, ouvindo falar remotamente de Lang, sim, e de outros refugiados como, muito antes, a protagonista de O anjo azul já na América da sua consagração definitiva, a Dietrich muito esperta, a Marlene muito “expedita e muito…

Sabem? Um dia, fui raptada durante as filmagens de A morte cansada… Ninguém esteve interessado naquelas histórias, nem na memória dos clássicos projetados em salas de cinematecas empoeiradas, pelos anos de repúdio da arte condenada como “degenerada”, pelos nazistas, e, mesmo depois, quando o susto veio a produzir repúdio por coisas tão germânicas como Der Müde Tod. O filme começa com a chegada de um misterioso senhor — que é a Morte cansada de si — à vila silesiana onde ela pretende comprar o terreno vizinho (não poderia ser diferente) de um cemitério. Fechado o negócio, a Odiada das Gentes faz construir um muro imenso, ao redor da sua nova “morada”, enquanto conta com descansar um pouco nesse retiro surpreendente, isso até vir a se deparar com um jovem casal em lua-de-mel. E o noivo, em especial, desperta a atenção do Anjo Negro, que decide levá-lo num “passeio” um pouco mais longe. Ao perceber que o seu marido desapareceu, a noiva… Bem, Lil fazia a garota alemã desesperada, a moça antes feliz e, de repente, em prantos incapazes de manchar a maquilagem pesada, no dia em que descobre o amado às portas do cemitério, onde uma procissão de almas se prepara para entrar, sem volta (ela o vê, entre aquelas almas, acena-lhe e tudo o mais, porém ele não pode responder, e a moça parte em busca da ajuda de um alquimista local; este se comove com o sofrimento de Junge e lhe recorda a passagem da Bíblia na qual se afirma ser o amor “mais forte do que a morte”, de maneira a influenciá-la a ir mais longe e a tentar pedir, através do suicídio, diretamente à própria Ceifadora…

“Lil Dagover!” — repete Nohara. Parece fascinado pelo nome que, por sua vez, parece inventado por um Karl May de melodramas de bazares — embora Lil tenha existido de fato, uma atriz famosa, uma diva que surgiu no seminal Gabinete do Doutor Caligari e prosseguiu na carreira por mais de cinqüenta filmes de diversos gêneros do cinema germânico e internacional, se é que querem saber a verdade rasteira dos fatos inventariados nas enciclopédias de cinema: Ms. Dagover was a particular favorite of director Fritz Lang, who cast the actress in such exotic silent classics Die SpinnenSpiders (1919), Destiny (1921) and Dr. Mabuse der Spieler (1922). Lil made one American film, Warner Brother’s The Woman from Monte Carlo (1931) – yet another attempt by Hollywood moguls to create a “Greta Garbo”, even though Dagover preceded Garbo by nearly a decade. Returning to Germany, Dagover avoided overt political involvement during the Third Reich…

Ela está sepultada num cemitério bávaro, debaixo de um plátano. Lil esteve louca um tempo — breve período de insanidade, que a tornou “mais elegante”, isso ela garantia — e se apaixonou pelo médico responsável pelo seu caso, num hospital da Moldávia mais tarde convertida num protetorado triste, sob a suástica derramando-se das fachadas dos edifícios públicos ocupados. Lil ficou doida antes da guerra (tudo aconteceu antes da guerra), e alegava ter saudade desse tempo de loucura tratada no frio, entre écharpes e chás, olhando para um vale à tirolesa, uma mão pousada sobre a manga do paletó de lã do seu psiquiatra tímido, talvez virgem (coisa que ela nunca pôde conferir, na noite de “amor clandestino” tantas vezes proposta ao rapaz recém-formado, segundo a futura “mulher de Monte Carlo” hollywoodiana. Não houve nada de mais sério entre eles, Lil afirmava com um pequeno tremor quase imperceptível na voz. Estava ainda enamorada daquele gênio solene desaparecido na fumaça do tempo, junto com a dos cigarros fortes que ela fumava com a piteira adquirida num “antiquário de Smirna”? Quando a piteira foi furtada, Lil deixou de fumar (ou, talvez, não tivesse chegado aos noventa anos). Segundo o comerciante turco da cidade renascida das cinzas, a piteira teria pertencido à ninguém menos que a…

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho