Na rede da Direita (final)

No brilhante A ideologia da cultura brasileira (publicado em 1977), Carlos Guilherme Mota identifica três livros que funcionaram quase como antídoto para o desenvolvimento da “febre” descrita por Andrade Lima
11/05/2015

No brilhante A ideologia da cultura brasileira (publicado em 1977), Carlos Guilherme Mota identifica três livros que funcionaram quase como antídoto para o desenvolvimento da “febre” descrita por Andrade Lima, nas mentes mais abertas que se dedicaram a ler a já citada obra-prima de Freyre — publicada em 1933 — e também Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, lançado em 1937.

Para Mota, as teses da elite oligárquica brasileira associada ao pequeno mundo burguês (coadjuvante, sempre) tiveram a contraprova do entusiasmo pelos “feitos da raça” — ou os pretensos “defeitos” dela, como no caso dos dolentes adeptos das redes, para VRM — ao se verem contestadas, paradoxalmente, por um escritor de orientação conservadora (Freyre) e pelos dois outros, esquerdistas de formação europeia (Gilberto completou sua formação nos EUA, como se sabe). Curiosamente, os três se juntam, entre 1933 e 1937, num mesmo “retrato” da formação brasileira a partir dos segmentos oprimidos, na nossa sociedade luso-tropical. Mesmo entre as ilusões de Gilberto sobre o modus da colonização portuguesa, tais segmentos foram revistos como protagonistas de uma História não redutível aos “efeitos” de hábitos como o de dormir fosse onde fosse (se é que a fome — mais adiante estudada pelo fundamental Josué de Castro — permite dormir o sono sem sonhos dos “cassacos”)…

A pequena amostragem que é A rede, a grande inimiga da civilização nordestina não teria outro ambiente para ser acolhida senão numa revista como Fronteiras. Surgida em 1932 — com o dístico Ordem: Autoridade: Nação logo abaixo do nome alusivo a limites e separações —, ela circulou até 1940, dirigida por Manuel Lubambo (futuro secretário da Fazenda do Estado Novo) e Vicente do Rego Monteiro, ambos confusamente irmanados sob a bandeira do “Movimento Patrianovista”, uma espécie de versão monarquista do Integralismo (durma-se — em rede ou não — com um “barulho” ideológico desse!)…

A impagável — porém séria — Fronteiras prestou a devida atenção ao aparecimento de Casa grande & senzala, e caiu, com as quatro patas, em cima do livro de interpretação sócio-antropológica, considerando-o “um dos ensaios mais perniciosos de sedução comunista no Brasil. Seu intuito é predispor, de criar ambiente propício, fazendo do brasileiro nato o resultado democrático da miscigenação, reduzindo a uma proporção mínima a participação ariana. Para ele, o brasileiro é um produto afro-índio escravizado por uma minoria branca. Casa grande & senzala é um livro pernicioso, dissolvente, antinacional, anticatólico, anárquico e comunista”.

A revista chegou a iniciar campanha pela proibição da obra e, quando Gilberto Freyre lançou Nordeste, em 1936, seus dois editores partiram para a completa desonestidade de visão sobre o que chamaram de “a Sociologia dos detalhes” do ainda jovem autor: “Sociologia dos morcegos, da cobra, do gato, da raposa, do guará e até do carrapato e do lacrau e do bicho-de-pé. Não tem nada de novo. Depois dos pitus do rio Una, nada mais pode ser descoberto neste País”. Sente-se o dedo de Vicente nos editoriais até engraçados — se não fossem cegos. Sobre Sobrados e mucambos o mais ameno que a revista disse foi que o livro era “um incentivo à luta de classes entre as cozinheiras e as donas de casa no Nordeste Brasileiro”.

Por que uma mente avançada, artisticamente (como a era a mente de Rego Monteiro), retrocederia até o máximo reductio de visão, na rede complacente da Direita? Por que artistas e intelectuais esteticamente avançados permitiram-se dar a marcha à ré política, diante dos rumos da História?

Aconteceu também com o poeta americano Ezra Pound, com o francês Louis-Ferdinand Céline e até com o argentino Jorge Luis Borges — um trio de altos artistas da palavra —, todos imersos na mesma “cegueira” de percepção a levá-los pela trilha da direita, em caminhadas que não poderiam terminar nada bem. No caso de Pound, findou com o “espetáculo” do seu aprisionamento numa verdadeira jaula, como louco perigoso vigiado por soldados (seus compatriotas), dia e noite. Extrapola, e muito, do campo de abordagem deste modesto artigo sequer tentar dar uma resposta para o fascínio (estético, apenas?) que as encenações fascistas de Benito Mussolini, as águias romanas decadentes e o símbolo fálico do Fascio exerceram sobre o grande poeta dos Cantos, pregador veemente contra a usura e a crueldade dos ricos. Não percebia, Ezra, que estava a ouvir o canto de sereia da velha oligarquia do novecento italiano, assim como soavam, aqui no longínquo Nordeste brasileiro, as toadas & modinhas da alta burguesia indiferente à senzala (caso estivesse tudo mais ou menos bem na casa grande)?…

Brasil velho de poucas guerras e surrealismo à beça! Se todos os seus males viessem apenas das redes, a gente até deixava de dormir nelas e em camas ou em qualquer lugar mais confortável para o corpo doído dos explorados desde os tempos da Colonização vesga e mesquinha (como toda “boa” colonização-que-se-preza), no continente ainda de veias abertas e, atualmente, sangrando de outras maneiras, via Soros e outros derrotados nas últimas eleições.

Vicente do Rego Monteiro, ó gigante da Pintura!, como “intérprete” sociológico, vosmicê foi um grande funileiro de flandres nas fronteiras da Grande Besteira — digamos (agora), antes tarde do que nunca.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho