A RÊDE, A GRANDE INIMIGA DA CIVILISAÇÃO NORDESTINA
Foi a rêde que ensinou ao ameríndio a indolência. Foi a rêde que nos tempos coloniaes induziu os gorduchos senhores e finas donzelas à preguiçosa somnolencia das selvas.
Foi a rêde que ensinou ao mestiço a inconstância, e as migrações constantes. Rêde que se enrola e que se transporta às costas, sem saudades nem apêgo ao rancho acolhedor.
A rêde e o seu inseparável alcoviteiro de flandres e duzentos réis são os grandes culpados da instabilidade das povoações nordestinas. A qualquer grito de alarme, à menor dificuldade existente entre o proprietário e o seu morador, e lá se vae a rêde enrolada em forma de matulão, a miuçalha à frente puxando a matrona que segue levando nos braços o filho mais novo, o alcoviteiro de flandres na ponta do dêdo… e o chefe da família o seu gancho (cavallo ou jumento), acompanhando a tropa, fazendo estralar a ponta do relho.
Proprietários, senhores de engenho, usineiros, plantadores de café e de algodão, facilitae aos vossos moradores a confecção de móveis pesados em sucupira, pau-d’arco ou pau-ferro, mesas, armários, leitos e bahús bem pesados afim de prende-los, enraizando-os à terra. O amor à casa é o segredo da civilização.
O nômade no seu estado primitivo sempre usou da rêde e dos abrigos fáceis e desmontáveis; o amor à casa e aos móveis do interior amigo e confortável é que transformou os bárbaros em civilizados e creou o amor à Pátria.
Este primor de visão redutora — mantida a grafia da época e soando hilária, embora seu autor a tenha escrito a sério — leva a assinatura do modernista avançado, pintor genial e militante da direita Vicente do Rego Monteiro.
Parece incrível, mas tal catilinária contra a pobre rede de dormir (e mais uma sobrada para o alcoviteiro de flandres) foi uma das “inspirações” do Vicente articulista da revista Fronteiras, publicação que congregou a nata da direita pernambucana, nos anos 30.
“Pecado” de época — mas nem por isso menos pecado —, o gênio original de Vicente trilhou pelos descaminhos da Fronteiras, expressando opiniões ora esdrúxulas ora conservadoras (ou ambas), quando já nem tinha a desculpa da juventude para errar nas artes da política, pelo menos. Na arte dos pincéis, ele sempre acertou em cheio — como ao voltar o olho para as formas geométricas dos índios brasileiros como fonte de inspiração do seu modernismo influente sobre Tarsila e outros colegas.
A vida tem dessas coisas. Muita gente boa — além de Rego Monteiro — caiu na rede das ideias fascistas ululantes naqueles tempos de camisas pardas e bisonhas imitações de Benito Mussolini e Adolf Hitler, aqui galvanizadas no “Anauê” tupiniquim de Plínio Salgado. O Brasil tem de tudo e, nos anos de fermentação política pós-tenentismo, teve também o seu pequeno burguês de bigodinho aspirante a Fürher dos trópicos. Todos sabem que o “intelectual” Salgado (como é referido no filme O soldado de Deus, longa-metragem mais recente do documentarista Sergio Sanz), cacique do Integralismo, foi responsável pela mais bizarra aproximação brasileira do ideário da extrema direita européia — transplantado aqui para Pindorama, numa pantomima sinistra de atos mal imitados do nazi-fascismo, sob a mortalha (essa, sim, indolente) de conceitos nacionalistas ainda mais confusos do que os do intelectual (verdadeiro, apesar de equivocado) Gustavo Barroso.
Isso aconteceu no tempo de um Brasil já surreal, no qual pareceram sedutoras, para muitos, as ideias de “destino nacional” e “raça”, mesmo aqui no Brasil mestiço que Gilberto Freyre acabava de decifrar em Casa grande & senzala (um dos livros mais atacados pela Fronteiras, conforme veremos mais adiante).
O nosso grande Rego Monteiro — como Hélder Câmara, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins, Gilberto Amado, Azevedo Amaral, Octavio de Faria, Virgínio Santa Rosa, Oliveira Vianna, Afonso Arinos de Mello Franco, José Maria Belo, Barbosa Lima Sobrinho, Martins de Almeida, Alcindo Sodré, Hélio Viana, Cândido Mota Filho, Capistrano de Abreu, Alcides Gentil, Paulo Cavalcanti, Miguel Reale e Gerardo Mello Mourão, entre outros — foi apenas mais um dos artistas e intelectuais atraídos, em meados da terceira década do século 20, pela mesma “atração fatal” do partido do Sigma (uma suástica estilizada) que, aqui no Recife, Andrade Lima Filho recordava com muita verve:
Berrei anauês, invoquei a “milícia do além”, incinerei fichas de traidores no fogareiro do ritual ridículo. Ouvi rumores de espectros funambulescos nas noites de Salem dos “tambores silenciosos”, integrei, muito ancho, a Câmara dos 400, enfim, fiz tudo como mandava o figurino de Plínio Salgado: arenguei em comícios, desfilei em paradas, dei murros, levei socos. E, hoje, e aqui, a repassar, na memória penitente, os lances quixotescos da grande bufonaria da juventude equivocada, a mim me parece ouvir ainda, às minhas costas de desfilante patusco, como o grande herói burlesco da ópera, o “ride palhaço” da galhofa e do apupo das multidões iradas, nas pateadas vingadoras. Eu era um deles. Um palhaço, sim. Aí o comício descia do palanque, ou a passeata atravessava na rua, terminando tudo em pancadaria. Era a bílis colorida em ação. O verde contra o vermelho.
(CONCLUI NA PRÓXIMA EDIÇÃO)