Falésias mínimas, ilusões da praia cega: os pequenos pés fugindo da areia quente, entre o mar e o rio da tua alegre curiosidade ali, longe da indiferença dos indiferentes. [Pergunta-se: só há indiferentes, agora? Indiferentes hoje diferentes daqueles indiferentes de Moravia, os ainda não indiferentes à própria indiferença.]
“chorei (nem sei mais por quê), desci para o escuro onde havia lampejos de dentes das ondas em espuma, mas eu não ia me ‘jogar no mar’ como a moça daquela ciranda: vim do Recife/ um rapaz me perguntou/ se na ciranda que eu vou/ tem muita moça morena/ eu disse tem/ muita morena mulata/ dessas que a morte mata/ e depois chora com pena”…
Ficava tão claro que você se sentia melhor na ausência de si mesma. Talvez desde antes de droga/sexo nas longas tardes matando aulas mortas por dentro, daquele modo peculiar de gerações — três, quatro? — que escolhiam Letras, Filosofia, Sociologia, somente porque alguma coisa havia que ser escolhida entre os prédios grafitados com tolices de “bluseiros e entendiados”…
“…porque pensei que atordoamento podia me curar de mim. perdi sandálias, bolsas e uma parte de secreta inocência em noites suburbanas, você sabe tão bem que eu estremeço, nunca me vi vista assim por dentro, não lembro, não esqueceria, posso mergulhar na lama de um rio e sair limpa do outro lado, embora não acreditasse nisso quando mergulhava neles e deixava que mergulhassem em mim com os peixes podres do hálito.”
Ainda mergulha. Mas olha errado para o céu, diretamente no branco acima das falésias, e o céu que não nos protege (“veja o filme e apareça”, lembra-se?) só responde aos olhares indiretos. E há que dar voltas e voltas pela Volterra das vagas estrelas acima de muralhas de pedras e não dos muros baixos que você transpôs com suburbana desenvoltura quase de desenho animado de tristeza no fundo da procura sem foco, a lama dos rios das febres noturnas escorregando pela pele interior que, eu suponho, você não ofereceria à voracidade brutal nos baixios.
“não, eu não deixaria que vissem o meu espírito deitado como as divindades descalças deitavam num daqueles mitos que você me contou, entre um Santa Helena e um Monte Velho (eu não conhecia nenhum deles) em taças de cristal cuja delicadeza me maravilhou. eu tinha meus mistérios, eram tímidos e meus, e ninguém sabia. só viam o que queriam ver. e ter. eu não me importava e ia com eles. você foi o único que chegou pela estrada das músicas e dos filmes e livros que eu gostaria de ouvir, ver e ler sem precisar de bebida e droga para tentar entender que um solo de Chet Baker poderia estar falando de mim sob a escuridão do quarto fechado onde também ouvíamos os latidos dos cães perto do depósito do lixo e longe da cama molhada numa madrugada.”
A “boa companhia” conhecedora de livros e filmes e ainda algumas histórias, de viagens para fora da fronteira do subúrbio de vícios do mar de gente que você gostaria de apagar da memória e da sala de areias e estantes de Filosofia a Erotismo. Percebi isso, e mais: o cálculo estranho que poderia se operar na tua cabeça capaz da matemática (?) relativizada do sentimento (??), como se fosse normal armazenar o espaço do sentimento: “estou gastando meu amor com você. será que vai restar para outros?”…
“eu escrevi isso?!”
Escreveu.
“sim, agora me lembro. pensei seriamente em apagar, mas não estava apagando nada, na realidade nem estava olhando para a tela, me sentia como um balão prestes a explodir, mas um balão bonitinho, um punhado de palavras saindo como o ar que sai de um balão que não quer explodir. esse lance dos atores. eu até tento ensaiar, mas dá um branco na hora do ensaio. e dá um branco também na hora de atuar. merda. eu nunca…”
Nunca o quê? As frases incompletas, as coisas suspensas, as leituras confundidas, os filmes embaralhados entre bons e maus, na cabeça confundida por mais que vinho sob o olhar de Cleópatra na caixa da “quebra-de-braço” que eu não sei se ainda restará na estante mudada de areias das noites de vidros partidos e manhãs de domingos começando chuvosos no conjunto onde o carteiro havia passado a entregar cartas, livros, CDs e desenhos que pretendiam lhe falar de outros mundos, outras salas, outros quartos e outras gentes; enfim, tudo o que passou a chegar, e você pensou que pudesse ser alguma “espécie de truque”, quando era somente a gentileza que sempre te desconcerta…
“gentilezas me desconcertam, realmente, porque eu não vivi entre gentis, não aprendi com delicadezas, mas com as asperezas das trocas e dos rasos impulsos em noites mais que imperfeitas”
Falo do fundo das pequenas grosserias na profunda garganta seca, isso que até me comovia — mesmo quando a grosseria era um pouco mais do que grosseira.
“tente esquecer”
Oh, estou tentando pensar em coisas tão antigas quanto o reino perdido de Palmyra, o remoto oásis da Síria de Zenóbia, uma mulher sozinha que ousou desafiar um Império. Quem ainda pensa na solidão da…
“nunca ouvi falar”
De tanta coisa você nunca havia ouvido falar! Porém Zenóbia foi só uma soberana, mais uma, na história lateral dos desertos também secos, rainha derrotada pela brutalidade de Aureliano e seus soldados…
“Aureliano?”
Um imperador romano. E também para esquecer, eu escrevi um poema inspirado nos versos de um desconhecido poeta de Bizâncio chamado de Paulo, o Secretário:
“Meu coração é mais antigo do que o teu.”
Esquece a sabedoria confusa da medusa
e lembra só do movimento de braços
e pernas em melodia na dança
que improvisou (em noite ainda mais perdida
do que a lua dissolvendo-se na manhã pagã).
Foi ao dissolvido som, sim,
de Chet Baker desfeito entre
as garagens de ferrugem acessíveis
pela passagem para pedestres
obscura como a madrugada de águas
da deidade deitada se aliviando
no escuro debaixo do ventilador
de teto de areias úmidas do rio
que não pode voltar,
corre para o mar
e se perde na chuva desta outra lua
dos versos de Paulo (não o Apóstolo,
mas o outro, “o Secretário”,
autor de A Vida, conforme se lê):
Cada manhã nascemos novamente,
dia após dia, sem conservar a memória
da vivida experiência.
Tornamo-nos por completo estranhos,
então, ao nosso ontem longínquo;
de novo começamos a viver,
pois tudo que já foi
está perdido sob a lua
e nada resgata a vida
que ninguém pode dizer
“é minha”.
NB: A respeito do autor de A Vida, só sabemos que “Paulo, o Secretário” foi um poeta de língua grega do século VI da Era Cristã que nos deixou alguns poemas plenos de uma sensibilidade de timbre quase moderno. A profissão do poeta, sempre colada ao seu nome nas poucas referências que restam, decerto se refere a algum cargo que terá exercido na corte bizantina.