João Gilberto e a nau dos insensatos

João Gilberto “sempre esteve à frente do Brasil”
Ilustração: Dê Almeida
30/12/2017

Neste final de vida, tenho pensado muito no João Gilberto. Penso em João Gilberto principalmente com relação ao Brasil, ou melhor, de algum modo relacionado com uma certa brutalidade latente, um básico “piso” de grossa ignorância — agora livremente manifestada — que fingíamos não ver, não notar, não levar em conta em inúmeras situações e circunstâncias que, por exemplo, cercaram (sempre) a modernidade da Bossa Nova e do seu representante mais radical: o João da irritação própria e, acima de tudo, da alheia.

Quando esse movimento musical começou a congregar, no Rio — o mesmo Rio agora martirizado, entre outros, por um troncho rebento do jornalista e musicólogo Sérgio Cabral (pai) —, uma geração notavelmente moderna, uma parte do Brasil, em todo caso, parecia ansiar pela modernidade na música, na literatura, no teatro, na arquitetura e nas artes em geral. Experimente: viaje mentalmente para os anos a partir do final da década de 50, e verá jovens cineastas em obcecada busca do país, assim como o pernambucano Nelson Rodrigues começando a exorcizar os fantasmas de uma classe média que se sentia “burguesa” (depois do escravagismo às escâncaras da Casa Grande) e também encontrará artistas visuais radicais como nunca mais tivemos outra vez (e isso chega a ser sinistro, neste momento em que a Casa da Moeda resolve homenagear o pior artista brasileiro de todos os tempos, o mero Romero — desculpem o trocatrilho doentio)…

Sou pernambucano, e não posso ser indiferente à minha própria citação de dois conterrâneos que respectivamente me orgulham e me envergonham, Rodrigues e Britto,

Rio e Miami, Vestido de Noiva e Mortalha da Pintura colorida como as caveiras de açúcar dos mexicanos neste Dia de Finados em que escrevo uma oração fúnebre pela parte no Brasil visivelmente gangrenada, necrosada, morta para o futuro, neste momento.

Bem, voltemos ao João. Gilberto “briga” com Pindorama desde que apareceu, carregando um violão que ele transformou quase num tipo de instrumento. O resto do mundo inteiro viria a perceber que o violão ficou datado em Antes e de Depois de João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, mas o Brasil “profundo”, não.

O Pindorama da Casa Grande do outro Gilberto (também pernambucano) não era o Brasil realmente profundo que Heitor Villa-Lobos resgatou das profundezas do seu gênio em contato com a modinha, o choro, o lundu, o samba, Bach e o escambau.

O Pindorama da grossa Casca Grossa reagiria a Gilberto como quem gostaria de internar aquele baiano de Juazeiro disposto a unir as pontas de Villa-Lobos e alguma coisa que surgira — insustentável — no ar dos aviões de carreira que faziam a “ponte aérea” Rio-Brasília, “loucura” de um mineiro chamado Juscelino (que era controverso, moderno e, à sua maneira, sincero).

Eu me lembro do João Gilberto que vi, pela primeira vez, a doze anos de idade. Foi no amplo auditório da então recém-inaugurada TV Jornal do Commercio (Canal 2), nas comemorações de um ano da emissora de televisão pioneira no Nordeste.

Ali, no auditório gelado (o ar funcionava maravilhosamente bem, as pessoas iam de casaco de frio em pleno verão), o gelo da recepção ao violonista e cantor chegava a superar o das máquinas importadas por F. Pessoa de Queiroz. Ele dedilhava daquela maneira pessoal, tranquila e inovadora, e cantava com a sua voz interiorizada, necessitada de microfone “minimalista” também… E — acreditem — havia, no auditório, aquela espécie de ódio quase geral em face da modernidade de um artista supremo, de um músico raro, de um cantor que amava as palavras e as pronunciava como se estivesse copulando secretamente com os versos. Isso iria seguir sendo o “modus” de recepção da sua arte, por parte dos brucutus.

Eu não vou repetir, aqui, que João Gilberto “sempre esteve à frente do Brasil” etc. etc.? Não. Isso já foi dito e continua a ser dito, pelos que entenderam João desde o primeiro gato suicida pulando da janela do apartamento de ensaios repetitivos do genial Gilberto. Essa foi, igualmente, a primeira das lendas em torno dele: a piada de um gato preferindo morrer a continuar ouvindo a modernidade perfeccionista de JG.

A origem da piada (uma dentre muitas, no mesmo “diapasão” derrisório): o mesmo território de ignorância profunda que hoje se exibe como uma quatrocentona paulista de 500 quilos cobertos de joias baratas. Ora, eu a conheço desde lá, no Recife, quando suas banhas se assentavam nas estofadas cadeiras de couro do belo auditório da “TV Jornal”…

Paulista, pernambucana, paranaense, mineira, gaúcha — não importa. Esse matronal monstro se traveste e vira um Moro carrancudo, um jovem descerebrado do MBL, uma jovem juíza dizendo barbaridades antidemocráticas em horário nobre da TV Globo. São as mesmas pessoas — sempre. Desde pelo menos o século 18, elas integram a elite econômica que manteve o escravagismo até mais não poder e, diante da indignação (verdadeira? falsa?) internacional, “libertou” os escravos negros num papel brasonado da corte, assinado por uma princesa hesitante.

E João Gilberto?

Não, eu não perdi o fio da meada: João Gilberto me parece — sempre me pareceu — a modernidade que Pindorama rejeitou, segue rejeitando e prefere, escolhe, “ama” rejeitar. A maior parte de Pindorama, isto é, o “Brasil profundo” (que nunca foi profundo), o país orgulhosamente ignorante que não quer ler, não quer ouvir, não quer VER. Por isso, não devia ser nenhuma surpresa, para nós, exposições canceladas e/ou censuradas, panos pretos em quadros mornos do erotismo que também assusta Pindorama, assusta a matrona das banhas da Casa Grande das Banhas que odeia João desde que o ouviu cantando sobre um barquinho (“um barquinho ???” “KKkkkkkkkk”) ou sobre um “pato” que vinha cantando alegremente e, de repente, viria a ser transformado no triste pato da Fiesp espalhado pela Brasília dos sonhos semi-stalinistas de Niemeyer. Sim, é o patão/patrão que nos fez a todos de “patos” vítimas do golpe jurídico-parlamentar cujo lado “cultural” vem sendo revelar abertamente o Brasil Reacionário em grande, enorme parte, o torrão obscurantista, o grotão medieval no gosto brutal por tudo que não seja João Gilberto.

João e sua afoita música do futuro que se tornou passado: uma promessa dos anos sessenta que virou incultura e indiferença pela sorte do país nas mãos de fascistas larápios em plena ação neste momento em que você ouve Wesley Safadão ou Bruno e Marrone não “na marra”. Não. Você ouve, matrona morta, porque você gosta. O que você odeia mesmo é a modernidade — ainda — de João Gilberto, o nosso (verdadeiro) Gênio da Raça Mestiça que você também odeia. Aliás, tudo que você sabe, Senhora dos Golpes, é odiar.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho