Respondo a algumas indagações de leitores em torno do texto que aqui publicamos (O primeiro monoteísmo da história), em seis partes, de julho a dezembro do ano passado. Leitores como Maria da Paz Ribeiro Dantas, Josias Saraiva, Donato Assis e outros propiciaram aquilo que Renato Carneiro Campos chamava de “salário moral” do escritor: o feedback, não necessariamente na forma de elogio, é claro, mas de leitura e comentário.
Esses leitores deram provar de ter acompanhado atentamente as seis partes, pelo que posso depreender das perguntas e anotações que me fizeram principalmente pelo meio eletrônico que, hoje, estabelece a comunicação instantânea com o leitor colhido na plena pós-leitura.
Começo por responder a Maria da Paz, a respeito da capital de Akhenaton (enfocada em dezembro):
Akethaton se conservou, mesmo precariamente, até o reinado do general Horemheb, sobre quem há pelo menos uma boa coisa a dizer: ele mandou fazer restaurações de alguns prédios e tomou outras providências do gênero. Horemheb era um soldado, e os soldados gostam de organização e de cuidado com as coisas materiais, o patrimônio, os bens duráveis, não importa que o tesouro mais rico da cidade — a sua crença abstrata — o general já não pudesse compreender, quando se recordava daquele estranho faraó a quem servira como comandante-chefe (de tropas quase nunca mobilizadas). Mas a 19ª dinastia, essa sim, devotará especial ódio àquele aspecto do passado — e promoverá o total abandono da capital do atonismo e o descrédito, final, de um “rei herético e criminoso”, com uma sanha de destruição que ainda nos espanta. A glória de Ramsés parece que precisava da desgraça de Akhenaton — e o faraó vulgarizado pela imagem de Yul Brynner, no filme de Cecil B. de Mille, lança-se à sua obra de repúdio total à crença e ao reinado do faraó monoteísta, com empenho mais do que estranhável, minha cara Maria.
Com o velho Yul e a sua careca faraônica, estamos em pleno terreno do Êxodo hollywoodiano, que popularizou também o iracundo Moisés de Charlton Heston, atirando o Decálogo gravado em duas pesadas pedras arremessadas na cabeça dos judeus adoradores do Carneiro (Amon).
Ao Josias Saraiva: Moisés foi o condutor de um povo que Deus teria escolhido para receptor de sua mensagem com exclusividade, etc. Se Deus assim o fez, parece que a divindade achou por bem se revelar duas vezes, porque aqui temos a primeira, no atonismo — o qual nós estivemos acompanhando nos seus inícios, apenas, nas seis partes. Essa religião (ou, pelo menos, a sua memória perseguida) sem dúvida que deve ter ajudado a plasmar o segundo monoteísmo — pela visão mística (e consciência de homem livre) do Moisés descido do monte, após ver a sarça ardente e ouvir a voz soando como pelo supermegafone de De Mille. Nelas, o profeta certamente encontrou forças para revelar o deus único dos hebreus, uma vez que a influência de Akhenaton devia ser considerável — no mínimo por gozar da aura das causas perdidas — quando o ex-príncipe egípcio (que foi Moisés) fez seu aparecimento na remota história da antiga tribo dos “habiru”, segundo a primeira referência conhecida aos filhos de Israel.
Contaminar povos
Retornado do deserto para Tebas, com as suas habilidades de “mágico” e pragas mais do que eficientes (pelo menos para os impressionáveis egípcios), o segundo monoteísta adentra a história das crenças religiosas no tempo dos raméssidas — o que talvez aponte para a verdadeira causa da campanha, a posteriori, na qual se lançaram os faraós dessa linhagem, contra uma fé (o atonismo, é claro) que, dessa forma, continuava viva e, pior, capaz de contaminar povos vassalos.
É a lógica que ressuma de alguns fatos aproximados; não há artifício nisso, nem se torce o pescoço da história ao se juntar os dados, com elementar sentido do que veio antes e depois: Moisés viveu no Egito de após Akhenaton, entre 30 e 50 anos da reforma em nome do deus único, em contato com a corte e com o impacto, que ainda se fazia sentir, dos sentimentos “antiegípcios” então associados à religião de Amarna. Não mais de meio século depois, o profeta do Êxodo vai fazer o mesmo tipo de revelação à tribo arrastada para o deserto que bordejava a capital tebana, com o firme propósito de fazer vaguear a sua gente pelo Sinai, a fim de torná-la merecedora da “Terra Prometida”. Tudo isso acontece sob o temor e o fascínio de “Iaveh” — desde a “revelação” ao guia do povo escolhido (?) pela divindade (uma espécie de versão, também luminosa, do luminoso Aton).
Apesar de se tornar, depois, um deus caracteristicamente judaico — no temperamento colérico e belicoso —, lá está, no momento do anúncio da missão “nacional” de Moisés, a forma daquela sarça já mencionada, pela qual Iaveh se apresenta ao profeta: é quase como um Disco Solar que ele não consegue encarar, naquela pura luz que emana do arbusto ardente ou incandescente. E é o mesmo deus de claridade que, mais tarde, no começo da jornada para longe do Egito, riscará os “dez mandamentos”, a fogo, nas duas estelas que a fúria dos maxilares cerrados de Charlton Heston (isto é, Moisés) lança, espetacularmente, sobre os infiéis da tribo. O filme de CBM é conhecido — e a Bíblia dos profetas é mais ainda: o Livro dos Livros (estamos em pleno território das maiúsculas) supostamente “ensina” à humanidade tudo o que ela precisa saber… exceto fatos tais como o monoteísmo de Moisés ter sido o segundo da história, se é que isso não parece de todo desimportante — face à visão cristalizada (e, depois, cristianizada) que temos dos chamados fatos bíblicos, do velho e do novo testamentos.
Desimportante? Não. De modo algum poderia ser desimportante a precedência de uma crença sobre outra — e também não é possível passar uma “esponja” no assunto e nos dados indicativos que estão na Bíblia: Moisés, para chegar à sua própria visão da Sarça (Disco?) luminosa, tivera uma iniciação “na sabedoria egípcia” naquela mesma velha “cidade de Om” que não é outra senão a Heliópolis do culto solar antigo, renovado por Amenófis IV, e, mais tarde, ampliado no primeiro monoteísmo (quando o rei ergue a nova capital e adota o nome de Akhenaton).
“Revelação”
Foi esse o culto que o rei egípcio primeiramente “reafirmou”, numa espécie de preparação da “revelação” que irá fazer — à sua maneira — aos egípcios. Se falta algo nesse primeiro momento do nascente monoteísmo, seria qualquer coisa como as “Pedras da Lei” amarnianas (caso um autêntico deus egípcio fosse tão sucinto quanto Iaveh, na sua lei gravada a fogo na pedra da mente mosaica — dura como a da tribo, e irada como uma boa cabeça de profeta bíblico condenando todo o mundo não-judaico, etc).
Ainda as acharemos, algumas egípcias “Leis” amarnianas, justas e elaboradas noutro contexto (e estágio) de cultura — se nos lembrarmos de que o Egito já era uma velha potência quando a Terra Prometida ainda era apenas “prometida”? Talvez venham a ser encontradas, “tábuas”, estelas ou qualquer coisa parecida com um “decálogo” mais refinado, em versão hieroglífica, naquela planície da margem oriental do Nilo que já nos ofereceu pequenas tábuas de argila capazes de revolucionar o conhecimento sobre esse assunto lateral da “terra dos faraós” — assunto que, aliás, nem parecia assim tão importante, ao vir à luz, inesperadamente, na confusa história das civilizações antigas.
Confusa? “Confuso”, meu caro Josias, pode realmente tudo que não pareça, à primeira vista, importante do ponto de vista ocidental — ou seja, para as ilusões, que nos fazemos, sobre o percurso traçado por crenças e idéias (vide Mircea Eliade, pelo menos) cujo impulso permitiu chegar até aqui. (“aqui”, entenda-se, sendo um alto lugar — mais alto do que a Pirâmide — que faz parte da ilusão), na marcha do admirável mundo velho da civilização relativamente jovem. Mesmo assim, o Ocidente acarinha a sua visão ideal do passado, e, nela, é a Bíblia Sagrada — o livro de uma tribo errante (depois fixada em Estado) — aquilo que, de qualquer modo, tem fornecido o “nexo” do que fomos, do que somos e, talvez, do que pretendemos ser. Primeiro, temos lá o que foi escrito sobre sarças, leis, pedras, tribos e fogo — no Antigo Testamento. Só depois é que alinhamos a nossa mais estimada herança (subseqüente), para defrontarmos os gregos marmóreos — aqueles homens do mediterrâneo de cerebral claridade, e cuja contribuição intelectual nos mantém também fascinados entre metafísica, heróis e banquetes de diálogos filosóficos sobre a República e as dívidas de galos comprados no mercado, etc. É a época na qual começam a despontar algumas das nossas taras — e o Negócio e a Política já exibem as suas muitas cabeças de Medusa, entre oliveiras e cabras subindo os montes para defrontar (mesmo as cabras) um edifício espantoso, levantado para o orgulho e a precisão da matemática do universo. Estamos pastoreando os números de Pitágoras — e a loucura ainda vai começar, bem depois do século V (brilhante) de Péricles…
Gregos
De maneira que, após os lamentos, as profecias, as imprecações e os cânticos de louvor, meio embriagados, de Davi e outras figuras menos rudes daquela pequena horda semita surgida do nada, são os refinados gregos da idade clássica que poderemos “escalar”, em seguida, como o melhor da nossa ascendência. De olho no Logos e na Acrópole, vemos esse edifício cultural nos fazer o grande, o enorme benefício de nos “confirmar” como herdeiros do melhor, do maior e do mais alto (pelo menos, a critério ocidental, sempre — pois a ilusão do “Ocidente” é um câncer de arrogância que nos mantém em constante contato com a metástase, não importa Moenjo-Dahro ou qualquer outra cultura mais remota: o câncer se sente a “superstar” de todas as doenças civilizacionais antigas).
Não importa, porque encaixamos (estou falando sempre “em nome” da doença) as brilhantes especulações filosóficas de Atenas e da “vizinhança” futuramente beócia — para os romanos práticos demais para a Filosofia — como um fundamental alicerce de tijolos debaixo do nosso edifício ocidental ainda firme nas rachaduras. Depois de Babel, essa é a torre que cimentamos com o orgulho fornecido por Roma, a “América do Norte” da Antiguidade agradável de ver chegar, então, aparecer para assumir a tarefa de “por ordem na casa”. É um grande momento, de movimentação e mudança: uns povos itálicos se reúnem para promover, carinhosamente, a despedida dos gregos, e para consolidar a civilização que tomará conta do mundo. Torna-se, tudo, tão simétrico! O grande império dos Césares surge na hora exata, aí nesse “nó górdio” cultural (que Alexandre não desatou — nem poderia desatar — porque não chegou a realizar o seu sonho de mão-dupla, o seu esforço de homem dos Bálcãs: fazer a mão ocidental encontrar a “contramão” da Ásia)…
Esfera dentro de outra, a querida imagem de circularidade entre povos que seriam pólos “complementares” encontra, então (ou pouco depois) um espelho perfeito no reencontro dos caminhos da Galiléia helenizada com a nova tradição hebraica, em casamento que são “as bodas de Canaã” da nossa festa de ajuntamentos forçados. Ali, entre os templos romanos e a sinagoga de Cafarnaum (na província culta e reverente aos deuses que os romanos não precisaram inventar — porque tomaram emprestado dos gregos), tudo se faz, de novo, tão unido e reflexo, tão “amarrado” idealmente, que a história prossegue como uma bola de mármore maciça rolando na mesa de granito encerado da antiga Palestina, entre a dureza da Judéia e as suavidades greco-romanas do habitat galileu ensejando a entrada triunfal do Messias, afinal, na Jerusalém do Espírito.
“Os cristãos têm só um crucifixo, ao passo que nós temos a medula da cruz”, escreveu-me o sufista (segundo ele próprio), Donato Assis, o último leitor nesta enfiada. [Você é segundo sufista com me confessa a sua fé, Donato, sendo eu um grande admirador dos discípulos da Rosa de Bagdá, é preciso que eu lhe diga.]
Herança do logos
Meu caro: Jesus de Nazaré vai se fazer crucificar entre o Antigo e o Novo, de fato, na medular distância iniciática entre os caminhos do Mar Morto e o desdobramento do helenismo reelaborado por visões de gosto semítico — quando a clara herança do Logos for aparecer, logo depois, mais ou menos temperada com aquela “gordura espiritual” que já está nos textos bíblicos do Vale dos Penhascos (em Q’uram, um dos cenários mais desolados da Terra). Menos irada e mais complexa do que na Idade dos primeiros profetas, a nascente etapa vai ser um ápice da pirâmide montada por pastores de cabras, sobre os muros da Jericó estranha que escavamos a medo, no epicentro de forças do mar imóvel — bem perto — que é o mais sinistro mar do planeta.
Sim, ninguém as ouve por sobre as muralhas — exceto um Cristo retornado, talvez, de mais do que misteriosas andanças pelo Oriente. Devem ter ocorrido mesmo, a se acreditar num Jesus histórico. O “Ocidente” — depurado da gordura asiática — de até hoje então se anuncia pelas trombetas dos anjos proclamando o Amor (um conceito a encerrar a antiguidade pagã, você o sabe, com a morte de todos os deuses que Juliano II tentou restaurar, mais tarde, no altar de Pérgamo e noutros altares derrubados).
Nos termos do seu mais que erudito e-mail, Donato, “a serpente engole o Peixe e morde a própria cauda, culturalmente” (como não admirar esse momento, em parte inventado por São Paulo?)
Você pergunta sobre o que eu penso da “Idade Atual” (assim, com maiúscula). E eu lhe respondo também com solenidade: para este humilde articulista, estamos no Grande Trevo ou entroncamento das vias que “rematarão” a História vista como a história do Mediterrâneo (primeiro) e a história da Europa — depois. É assim que temos organizado o conhecimento: em torno do próprio umbigo orgulhoso do cordão umbilical ligado à antiga literatura judaica e seus conexos (ou “conectados” artificialmente) adaptáveis o suficiente para caberem, todos, no Salão Nobre Ocidental.
Estamos para descer o rio? Para “repor” as forças espirituais da corrente principal? Saberemos reencontrar a nascente, a fonte do Nilo Azul? Ou continuaremos, como galés forçados, remando contra correntes contrárias, caudatárias de falsos “congos” interiores?
Ficam as perguntas (embora eu tenha começado dizendo que viria com respostas — que, sinceramente, ainda não tenho, desculpem. E Bom Ano-Novo!).