Fumaça sobre os espelhos

De onde vem a estranha representação que nós, ocidentais, fazemos do Oriente
01/07/2010

“Amamos o que não conhecemos, o já perdido.” Esse verso é do poema O nosso, de Jorge Luis Borges. O autor de Ficções constata que amamos “o bairro que foi arredores”, os antigos “que não nos decepcionarão mais” (porque são “mito e esplendor”) — assim como amamos o Oriente que, “na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro”.

Deixando de lado o amor do desconhecido/perdido, creio que o verso sobre o amor do Oriente — “que não existe para o afegão” — serviria de perfeita epígrafe para qualquer texto cujo foco se centre nos amantes da ficção que é o “Oriente”.

Se os afegãos — e persas e tártaros etc. — não tomam sequer conhecimento de que são isso para nós, ocidentais, que representação estranha é essa, que nos fazemos, de um Oriente “inexistente”? Estará a ocidente — o Oriente —, nas nossas loucas cabeças?

Logo depois do 11 de setembro da queda das Torres Gêmeas, mundialmente submergimos num mar de imagens e “informações”, com e sem aspas, sobre essa ficção das ficções, segundo Edward W. Said, no seu já clássico Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente (Companhia das Letras, tradução de Tomás Rosa Bueno, 2001). A tese está muito bem exposta no livro do professor da Universidade de Columbia — que se recomenda como leitura ainda pertinente. Outros títulos também continuam úteis, nesta hora do Irã na berlinda atômica e de Israel de armas apontadas para todo mundo, gritando “fogo!” em estilo nazista — mesmo contra um barco de ajuda humanitária com olho em Gaza.

Ingleses
Certamente que foram os ingleses, desde sempre, os mais sensíveis ao apelo da região — fazendo do assunto oriental uma espécie de Idéia-mãe de todos os estranhamentos. Ou pelo menos aqueles ingleses do tipo do “sonhador acordado”, a respeito do qual Thomas Edward Lawrence (1888-1935) escreveu magistralmente. Ele queria se referir a algumas mentes oxfordianas típicas, de eruditos em vários campos, todos vitorianos — de geração ou de espírito — e que formaram entre os “sonhadores acordados” nas suas camas confortáveis, mas dispostos a trocá-las pelo chão rude das tendas, no desconforto do deserto e à volta de ruínas circulares que confundem os tempos.

Wilfrid Scawen Blunt, Richard Burton — não o ator de Cleópatra, mas o escritor e diplomata inglês que foi cônsul em Santos, na segunda metade do século 19 —, Charles Montagu Doughty, David George Hogarth e Saint-John Philby (do ramo britânico mais recente) se tornaram autores obrigatórios do orientalismo como disciplina e até como poética. Da linhagem francesa, não se pode ignorar a obra de Antoine-Isaac de Sacy, Renan, Caussin, Louis Massignon, Maxime Rodinson e Gerard de Nerval, o “poeta do Oriente”. Há toda uma biblioteca, em várias línguas, reunindo desde estudos severos — de história e antropologia — até cadernos de anotações de arqueólogos e viajantes a sonhar com uma “nova Ásia” surgindo naquela época em que idéias ainda podiam ser novas.

Edward W. Said desconfia de quase todas elas e, no seu livro, mantém o leitor prevenido contra os “orientalistas”. Dentre os ingleses, ele só “livra a cara” de Scawen Blunt, anti-imperialista realmente sincero: “Esses peritos no Oriente trouxeram as suas obsessões e as suas mitologias particulares, as quais foram estudadas, em escritores como Doughty e Lawrence, com considerável energia. Cada um deles — Wilfrid S. Blunt, Doughty, Lawrence, Bell, Hogarth, Philby, Storrs — acreditava que a sua visão do Oriente era individual, criada a partir de um encontro intensamente pessoal com a região, com o Islã e com os árabes, e cada um deles exprimia um desprezo geral pelo conhecimento oficial sobre o Oriente… Mas, em última análise, todos — salvo Blunt — exprimiam a hostilidade e o medo tradicionais do ocidental em relação ao Oriente.”

Sonhos & pesadelos
Lawrence se lançou à ação animado pela ilusão particular que se fazia sobre o seu Oriente. Sonhava inscrever a sua vontade “no céu, entre as estrelas: por isso tomei nas mãos estas ondas de homens”… E os enviei contra as duas Torres de Orgulho.

Tomo a liberdade de associar — retoricamente — o sonho inscrito no verso de Lawrence (na dedicatória de Os sete pilares da sabedoria) com o cenário trágico do World Trade Center não porque exista qualquer tipo de ligação entre as duas torres da soberba e os altos pilares lawrencianos de outros tempos, mas porque os “orientes” continuam os mesmos, através dos acontecimentos das duas épocas. A de Doughty — modelo de T. E. Lawrence, como estudioso — foi aquela do colonialismo imperialista, cuja política “descompressiva” (no que diz respeito pelo menos à Inglaterra) partiria da Conferência do Cairo, em 1921.

Desse encontro de especialistas, o Colonial Office acataria as sugestões de “criação” dos reinos árabes do Iraque e da Transjordânia, saídos da régua e do compasso dos orientalistas convocados por Winston Churchill. Lawrence da Arábia funcionou como “ministro plenipotenciário” nessa ocasião, e eu tenho aqui comigo o original da carta — datada de 26 de fevereiro de 1921 — na qual o octagenário Wilfrid Blunt o exortava a defender, na capital do Egito, a “causa da vida de ambos” contra as distorções imperialistas.

É um documento que ainda impressiona pelo tom de Blunt — mais de um xeique bedu do que de um velho inglês escrevendo da biblioteca de Newbuildings Place. A carta — que faz parte da nossa coleção desde o ano passado (quando a adquiri do alfarrabista londrino Julian Browning) — basicamente refere a mesma “causa” que ainda nos obriga a lançar vista sobre o passado, para tentar entender o presente e que se passa lá, ainda agora, uma região que pode vir a determinar o futuro que nos resta. Confundida, tal causa jaz entre acontecimentos remotos e não tão remotos das décadas de 1920, de 1930, de 1950… e desta primeira década do século 21.

Dentre os primeiros, há que recuperar os fatos da “queda” da família hachemita, herdeira do xerifado de Meca e bandeira da Rebelião Árabe conduzida pelo príncipe Feisal e por Lawrence. Foi dela — isto é, do rei Hussein (pai de Feisal) — o aval religioso, de quem detinha o poder pelo menos teocrático, sob o jugo do império turco-otomano… Esse tipo de poder que não continuou prevalecendo na sagrada Meca — junto com a titulação da família descendente direta do Profeta — quando o trono foi usurpado, em 1926, pelo “estrangeiro” Ibn Saud, sultão do distante Neged. Isso aconteceu quando a exploração do petróleo começava a mudar a face do Oriente e sua significação resta meio oculta na dobra das atuais disputas que — sem maiores explicações — “simplificam” a posição de Osama Bin Laden como opositor do reinado dos sauditas descendentes do homem que teve o seu “Lawrence” no espião e orientalista “Kim” Philby. (Ou seja, a presença de tropas norte-americanas no coração da Arábia explicaria apenas uma parte da questão mais do que política ou tribal — porque envolve também os valores religiosos negligenciados pela linhagem, recente, dos filhos de Saud, príncipes do jet-set e muçulmanos educados muito longe da Caaba).

O que aconteceu no Hedjaz entre 1916 e 1918 — e que se vê no filme Lawrence da Arábia apenas como pano de fundo da aventura pessoal do agente inglês — nos interessa e representa uma das cenas preparatórias dos conflitos que hoje vivemos. Por isso, urge desfiar, fio após fio, os nós da tapeçaria que vem desabar no meio das nossas salas, via CNN (e outras), em choque de forças antagônicas que se sucede à Guerra Fria e nos exibe a “lógica” terrorista maturada no estômago de avestruz do tempo. É a face nova, de diferenças mais do que políticas e de conflitos inortodoxos, do ponto de vista militar, na ultrapassagem dos modos da guerra clássica — e pela forma de encarar a vida e a morte (a qual nos é apresentada, simplificadamente, como um dos aspectos do pensamento “arcaico” em disputa contra a modernidade).

Esse é, de certa maneira, o substrato do tema do orientalismo tomado como o estudo da (subjacente) oposição entre o sagrado e o profano, a visão “de transcendência” — que permeia tudo, no Oriente — e a tabula rasa em nome do mercado, que é a nossa principal doença, talvez desde aquela Roma, pragmática ao extremo, que foi os EUA da antiguidade, como nos ensina Terry Jones no admirável Roma e os bárbaros (infelizmente ainda não traduzido no Brasil). Também o romeno Mircea Eliade merece ser revisitado. O mestre de religiões comparadas — e fundador da cadeira, na Univerdade de Chicago — tem sua palavra a dizer sobre o vazio da alma do homem ocidental contemporâneo, no fundo das estantes empoeiradas da Biblioteca de Nova York, ao fim do corredor de ciências sociais e bem além da seção de economia & informática. Seus livros nos ensinam sobre a perda: não temos mais contato com os mitos formadores, nem uma fé que nos console — e também demonstram o quanto arruinamos a natureza, não só nos mares poluídos pelo óleo alimentador do modelo de consumo desenfreado.

Não é possível viver (bem) no mundo em que tudo é redutível à visão de Mercado — e só nos libertaremos dessa prisão mental de falsos Midas se amputarmos os rígidos dedos de ouro do Capitalismo-robô das cinzas. O Ocidente enfrenta, talvez, a forma final da decadência, atrás de modernas muralhas de Jericó, rachadas para sempre. Esta visão só é possível, plenamente, desfazendo-se todas as ilusões que já nos criamos sobre todos os “Orientes” elaborados pela fumaça sobre os espelhos.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho