Foi o ator John Malkovich quem me colocou no rastro deste assunto, mais ou menos próximo justamente do “Rastro” de Martiricos, a feira doida de Málaga (Espanha), onde se vende tudo que se possa imaginar.
“É ele” — teimou a minha mulher.
“É só parecido, Cristina” — ponderei, paciente e equivocado.
“Ninguém poderia ser tão parecido e ter, ainda por cima, o andar feio que ele tem. É Malkovich, sim.”
Era. Sem os óculos escuros, quando o norte-americano entrou numa camionete (escrito Fundación Cajamar), percebi que o “Port Moresby” de O céu que nos protege deveria estar de passagem pela capital da Costa do Sol, por algum motivo. Motivo talvez relacionado com o fato de ali se encontrar sepultada Jane Bowles, a “Kit” do filme de Bernardo Bertolucci baseado em The sheltering sky, o romance de Paul Bowles que atingiu a geração pós-Segunda Guerra quase com o mesmo impacto de On the Road. Malkovich desempenhou — magistralmente — o papel de Port, alterego de Bowles.
Marido da também escritora Jane (autora de alguns capazes de rivalizar com os melhores dele), Paul escreveu esse seu primeiro livro em 1949, basicamente na região ainda hoje conhecida como o “Marrocos espanhol”, o qual se alcança de ferry, desde Málaga, atravessando o estreito de Gibraltar a partir de Algeciras, porto a menos de dez quilômetros da metrópole malaguenha. Nesta primavera de 2010, essa capital de província dera início às comemorações do centenário de Bowles, e — só depois vim a saber — a presença do ator meio vesgo e careca, mas com enorme carisma (basta citar o filme Eu quero ser John Malkovich), para apresentar um “concierto lírico teatral” intitulado The infernal comedy, estava ligada a tais comemorações (iniciadas com a reforma do túmulo de Jane Bowles, no cemitério de San Miguel — o mais antigo da cidade — onde até corre a lenda de aparições de uma mulher toda vestida de negro e muito parecida com a escritora que faleceu em 1973, após seis anos de internamento num clínica psiquiátrica).
Do mesmo modo como a marroquina Tânger celebra Paul — que fixou residência lá, desde quando fez a viagem (de “viajantes e não tourists”) que inspiraria o seu tão bem sucedido romance autobiográfico —, Málaga, terra natal de Picasso, está hoje muito voltada para a cultura, e resolveu reabilitar a quase anônima senhora que viveu ali seus anos mais obscuros, perdida no limbo de uma perturbação mental que provavelmente se iniciou naqueles anos de deambulação pela África do Norte, difícil como o relacionamento amoroso de um homossexual com uma lésbica, em casamento inevitavelmente em crise, como era o caso do de Jane Sydney Auer e Frederic Paul Bowles.
Estranhos, estranhíssimos Jane e Paul, “Kit e Port”! Dois talentos para a literatura, a música, o teatro e a vida — mas em desencontro, constante, que só nos faz recordar a frase melancólica do imperador Calígula, na peça homônima de Albert Camus: Os homens morrem — e não são felizes.
O romance do estranhamento
Talvez a exígua obra de Jane Bowles — um romance publicado e um inacabado, algumas peças de teatro e alguns contos magistrais — venha crescendo na estima crítica um pouco mais do que a prolixa produção posterior do marido, mas é ainda o romance emblemático de Paul que continua a dar as chaves pelo menos do relacionamento que a levou, provavelmente, a um impasse psicológico maior do que o daquele senhor auto-exilado de cabelos brancos, elegante e tranqüilo, que Bertolucci introduziu como uma espécie de “narrador” — inicial e final — de O céu que nos protege, ao adaptar o romance do mais célebre residente de Tânger, na segunda metade do século passado.
Ele atraiu muita gente para lá. Um jornalista francês a quem o escritor concedeu uma das últimas entrevistas, disse que falar com ele era fácil e também como “visitar um cemitério de notoriedades”. Enquanto Jane mergulhava no ostracismo da clínica de Málaga, do outro lado do estreito gibraltense, ele prosseguia fazendo da branca cidade da costa africana uma espécie de Meca literária na qual você poderia deparar com Tennessee Williams tomando chá de menta, Truman Capote escolhendo lenços multicoloridos num suk, Cecil Beaton fotogrando negros bonitos e Françoise Sagan conseguindo não fazer nada, no intervalo do tédio de viajar de Seca para aquela falsa “Meca” arejada.
Christopher Isherwood era outro amigo do autor de The sheltering sky que poderia ser encontrado saindo de Tânger para as cidades ocres da África do Norte, por influência do casal. Porém foi Jane quem ele escolheu para homenagear, quando criou a louquinha “Sally Bowles” (vivida por Liza Minelli) da narrativa que serviu de base para o filme Cabaré, de Bob Fosse. Hoje, Tânger vê diluindo-se, aos poucos, esse ímã (ou esse iman?) que era o escritor norte-americano vivendo num apartamento de quarto andar, a poucos metros do consulado espanhol.
Ainda existe uma placa, no saguão do edifício, com o nome BOWLES encardido no latão, mas o velho expatriado — que recebia as pessoas sem maiores cerimônias ou até com certa curiosidade de solitário etc. — desde 1999 não está mais lá em cima, no quarto onde era encontrado em ambiente até certo ponto abafado (a janela coberta por um cobertor berbere), reclinado na cama entre lençóis estampados de arabescos e com um largo lenço em torno do pescoço, como se permanentemente sentisse frio na Tânger quente.
Ninguém mais distante daquele “Port/Malkovich” que, no ótimo filme de Bertolucci, é um desajeitado compositor em crise de criação artística e no casamento com uma dramaturga mais ou menos diletante. Ao desembarcar num porto de estranhamento, está também procurando reencontrar a comunicação com a mulher, enquanto ambos de comum acordo decidiram afastar-se para bem longe da Costa Leste de festas de ricos sem imaginação, para os quais todas as viagens deveriam ser com destino a Paris (mesmo que, lá, de imediato pensem em voltar para suas piscinas cheias de cloro e reflexos do vazio existencial)…
Foi disso que o casal Bowles de carne e osso fugiu, em 1947, no transatlântico do derradeiro luxo.
A pele da serpente
“Porque não sabemos quando vamos morrer, nós começamos a pensar na vida como um bem inesgotável.Yet everything happens only a certain number of times, and a very small number really. No entanto, tudo acontece apenas um número limitado vezes…” — soa a voz de velho do Paul Bowles, no final do filme que eu considero ainda mais belo do que o romance original. — “QHow many more times will you remember a certain afternoon of your childhood, some afternoon that so deeply part of your being that you can’t even conceive of your liuantas vezes mais você vai se lembrar de uma certa tarde da sua infância, uma tarde que faz tão profundamente parte de seu ser que você não pode sequer conceber sua vida sem ela? Perhaps four or five times more, perhaps not even tha Talvez umas quatro ou cinco vezes, talvez nem isso.How many more times will you watch the full moon rise? Quantas vezes mais você vai assistir o nascer da lua cheia? Perhaps 20. Talvez vinte. And yet it all seems limitl E, no entanto, tudo parece sem limites…”
Diante da nova laje de granito negro do túmulo de Jane, no arruinado cemitério de San Miguel (que parece ter sido bombardeado, com ossuários e mausoléus ainda abertos, para a restauração decidida no lugar da remoção), pensei na melancolia desse pensamento que conclui o filme O céu que nos protege. Pensei também no casal perdido de si mesmo, buscando saídas na sexualidade e encontrando talvez as portas fechadas ainda aí, por via de tramas recônditas da infância que o freudianismo tentou abrir talvez com uma visão mecanicista que é o maior defeito de herr Doktor Sigmund.
Não é tão simples assim — e o que nós sabemos das sombras, Jane Bowles?
O sol de Málaga queimava o triste lugar de ossos expostos, e havia mais do que um silêncio literalmente sepulcral. Não havia flores — nem secas — sobre o recentemente “inaugurado” novo túmulo (os ossos de Jane estiveram para serem jogados numa vala comum, e foi uma moça de Málaga, fã da escritora, quem pagou do seu bolso para localizarem a modesta campa de tijolos original — “435-F” — já sem o nome da escritora).
Neste começo de primavera, os festejos são para o centenário de Paul, ainda. A literatura da sua “louquinha” — mais desconcertante do que a dele — ainda espera pelo pleno reconhecimento do legado literário que ela deixou, escasso mas tão particular que sabemos reconhecer — “isso é puro Jane Bowles!” —, quando defrontamos algumas das suas visões inesperadas da vida e das relações de amizade ou amor entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, não importa. Tudo é amor. A vida é muito breve para que a separemos em caixas de costumes e regras morais feitas por outros, com duvidosas intenções de poder e domínio que dizem respeito à Religião, ao Estado e demais entidades abstratas que abandonam um cemitério assim, como se as pessoas ali enterradas jamais houvessem existido ou não fizessem acender a menor centelha de lembrança no peito dos sobreviventes anônimos que morrem e “não são felizes”…
John Malkovich esteve aqui em San Miguel? Fiz a pergunta ao vento, ao sair do lugar mais triste que já visitei na minha vida. Felizmente, a vivaz Málaga parecia pulsar para além dali das cercanias da Plaza del Patronimo, com aquela aparência que Ingmar Bergman descreve como a da pele da serpente oca, coberta de milhares de formiguinhas em atividade frenética: vista de longe, a impressão poderia ser de uma serpente viva, no sentido oposto do termo da frase de Calígula. Ou seja, os homens vivem — e parecem felizes (apenas parecem, diria Jane Bowles) debaixo do sol que não nos protege.