Eliza Fraser

É possível também desejar a vida como fonte de morte
01/07/2009

Talvez o sol piscando na água a fizesse voltar para lá, subitamente, e se sentir tão perdida que quisesse morrer antes da tarde, quando os copos se tornavam insuportáveis, todas as coisas delicadas e condenadas — alguém dedilhava uma sonata vaga, o som se evadindo pela janela de cortina de renda suspensa para dentro da sala de serviços de porcelana que nunca haviam sido usados — de maneira que ela gostaria de gritar, quebrar o vidro nos caixilhos e fazer tremer as xícaras virgens, os pratos intocados que não juntavam poeira porque havia empregados para fazer o serviço duro, havia gente demais na casa, luz demais, sombra demais, tudo era demais para ela, quando se encontrava assim, de frente para o sol das suas lembranças, no meio de uma vegetação gigante que lhe dava sono, murmurando coisas esquecidas e sentindo que ninguém a compreenderia se começasse a falar neles, de novo, a recitar que estavam salvos, eles estavam salvos, ninguém mais, o padre estava condenado, o bispo, as mulheres suadas na intimidade, a mais perfeita noção do dever cumprido era nada quando se estava sozinha e vulnerável, triste na chuva ou debaixo de um sol sem piedade cristã de velinhas acesas no Natal de cantores, bêbados e mulheres se permitindo rir de uma piada inconveniente sobre o asseio das moças virgens num mundo tão pecaminoso que podia fermentar o…

Ela se olhava no espelho como se olha para uma completa estranha. Não se reconhecia, absolutamente, abotoada até o pescoço ou debaixo da toca de pudor que deixava o cabelo suado (os fascinantes pêlos corporais, vírgulas nas pias que levavam a um leve enjôo entre chás, pedindo licença: “não, não quero mais”), os sinais nas costas, as estrelas discretamente carregadas para a morte, porque era impossível a descrição do que fora isto: viver entre eles. Não necessariamente mau nem bom, não eram assim as coisas na vida, ninguém se desloca de si para continuar entre as salas e as cozinhas da mente quebrando as xícaras delicadas da convenção, isso que jazia estilhaçado aos seus pés por muito tempo morenos — antes, pintados (as manchas de ocre tinham levado mais tempo a desaparecer do peito bem desenhado do membro muito pequeno para uma mulher da sua altura) — de modo que ali estava a oportunidade de quebrar o resto, enquanto por dentro estava gritando sem que nenhuma daquelas mulheres vestidas compostamente (o que lhe inspirava a nudez, no banho? Como lhes parecia o próprio pé nu — os pés podiam mais nus e mais íntimos do que o resto visível do corpo — saindo do limite do lençol como um animal branco, assim como negros pêlos de axilas podiam ser ainda mas indecentes, ambas as partes tendo odores nos quais as senhoras compostas não gostavam de pensar, no escuro da cama que confunde os corpos e a alma nele enclausurada), tudo era clausura e rumor da chuva na madrugada, tudo podia assaltar, de repente, o pensamento temeroso de pessoas pensando que o mundo era assente como uma mesa pesada, estava seguro como um cão por uma corda, até a mesa se incendiar sob a lama de lava e o cão roer o joelho da morte, num esgar horrivelmente conservado.

Limites do corpo
O que era o corpo? Quão pesada era a natureza desse suporte que medeia todas as coisas — e que é, afinal, tudo que podemos saber de certo, antes do termo fatal que o anula, como a água fria de um pote apaga a luz de uma lâmpada de terracota?

A sexualidade levava a defrontar os limites do corpo para muito além do conceito de prazer a que está vinculada a (aparentemente) simples palavra.

Vocábulo sem centro, “prazer” então se tornava — ou podia se tornar, mediante o propor-se mais acima ou mais abaixo o buraco negro, branco ou cinza que investigamos nas zonas de sombra do sexo — uma nebulosa semântica de muitos significados principalmente sob o foco da moral que era uma invenção da mente, e não parte da natureza, como o sexo e o prazer que ele desperta, misterioso como a morte.

Mulheres que não conheciam todas as possibilidades do corpo não podiam compreender a essência profunda desse acontecimento obscuro no centro do sol da carne. Toda a idéia moral que construímos sobre isso jazia debaixo da lápide dos costumes, quase sempre colocados no outro lado da ilha de solidão da carne quando tocada por todos por tipos de comunicação com outro corpo — em quais termos, não importava (a Natureza não é moral, no sentido em que criamos a palavra para definir o que está, rigorosamente, fora do mundo animal no qual tomamos parte muito freqüentemente “culpada”, culpada e culpada).

Havia coisas ainda “perigosas” a dizer sobre a sexualidade. Não devia ser assim. Não deveríamos ter “medo” de pensar que podemos legitimamente desejar morrer como fonte de prazer — por que isso o que era? Apenas o prato invertido da consciência de Tânatos, ou seja, da morte como mediadora do instinto de viver, pois é possível também desejar a vida como fonte de morte. De certo modo, não havia a morte — só a vida, enquanto estamos vivos para sofrer e buscar o prazer, entre outras coisas.

O prazer — a “pequena morte” dos antigos — podia, é claro, se perverter nesse caminho de conhecer o que diz respeito ao corpo como assustadora fronteira, ao sexo como limite (para ser ultrapassado, como todos os limites obscuros) dentro do mistério imemorial da realidade. E o que era a realidade? A ilha? O mar? O céu, numa síncope? Descobrira ciclopes dentro de si. Estava perdida para voltar e retomar a vida que aquelas pessoas viviam (e ela vivera, sem saber que não vivia).

Unhas cortadas
Então, fora salva pelos aborígenes? Procuraria a proteção deles, se pudesse fugir para os “perigos” das quais sua própria a livrara para mergulhá-la naquilo. Sua alma estava, talvez, salva — ou a caminho da salvação difícil — porém sua alma aspirava voltar para as coisas sentidas com uma intensidade que tornava, agora, tudo irreal como unhas cortadas.

Estava seccionada de si mesma? Suas longas pernas se apoiavam em sapatos sobre a grama cortada? Eliza pensava nessas coisas — sem saber que as pensava — distantes de todas as mulheres que não haviam vivido entre os aborígines, fosse pelo tempo que fosse (e o seu — na costa de Queensland — havia sido um longo tempo chocante para as damas pálidas com covinhas nas faces coradas quando o corpo as surpreendia como uma indígena nunca se sentiria surpreendida).

Cada uma daquelas lentas vacas de sorrisos deveria estar se perguntando, no meio dos bolos e dos ponches doces: “O que lhe dizer, agora que havia voltado?”

Como lidar com seu fantasma, real como um pano de menstruação mal escondido no chão, entre duas camas limpas? E como camas podiam ser limpas? Por que os pensamentos lhe afluíam, selvagens e loucos, inconciliáveis com o chá em sua homenagem? Perdera de todo a educação, no ambiente dos selvagens?

Ainda não agradecera ao pastor, à sua mulher e a todos que haviam vindo, conexos com Piedade, Amor e Morte. Gostaria de lhes dizer que estavam mais mortos do que vivos e por isso fugia inclusive do risco das palavras de agradecimento que poderiam se tornar uma gargalhada meio sinistra entre as alvas paredes do presbitério ou mesmo ali, ao ar livre, entre ponches e crianças vigiadas, sussurros das árvores e a agonia do que (certamente) restava da sua alma má…

Estava tão afastada que podia pensar assim. Estava tão diferente que não mais podia retornar da treva iluminada. E as outras praticamente não lhe dirigiam a palavra talvez porque adivinhassem isso, soubessem de tudo — como as mulheres sabem, entre si, umas sobre as outras e todas sobre ela, a mulher tornada ruim pelos “pagãos” (que era a palavra escolhida pelo pastor, com o cuidado dos seus dedos de moça de suíças), retornada de um barco que cruzara a linha para o inferno negro onde tudo corria solto ao ritmo da Natureza que eles não tinham como saber que era belo e perigoso, ritmo terrível e mais do que solto, ritmo verdadeiro, de crueldade e beleza.

Solidão especial
Havia uma infelicidade que transudava da vida das mulheres que percebiam quão infeliz era a vida das mulheres. Nos sorrisos amarrados nos rostos cristãos, nos dedos alongados para a solidão que acometia, de repente, não só as solitárias mulheres, nos seus lábios calados quando eram deixadas de lado, para trás, no fundo, nas cozinhas, próximas dos berços que as acorrentavam à vida que não eram delas, havia isto: a solidão especial das mulheres acordadas e não daquelas que estavam dormindo na face, nas mãos atadas pelo nascimento, a herança, o casamento, a vida prevista para aquelas que não haviam tocado o limite da sombra no fundo inesperado do mar de verdade cercando as ilhas da solidão que, nos homens, encontravam a arte, a guerra ou a história como refúgios de realização, morte ou poder que os embriagavam de três diferentes maneiras. O pastor mesmo…

Aquele homem e sua roupa preta, ali no pequeno círculo de influência perdida numa charneca australiana desconhecida do resto do mundo, ele pudera impor tal “party” cristã, pela convenção da qual já quatro senhoras lhe haviam sorrido sem sorrir — para lhe trazerem ponche, nervosamente, como se Eliza Fraser (“perdida e reencontrada, meus irmãos!”) fosse um raro animal sedento de coisas doces — quando Eliza não suportava mais coisas doces (pelo menos do “doce” da humana carne).

“Sim, os nativos eram…”

“Oh, bem, eu passava os meus dias de cativeiro dedicada às pequenas tarefas que me davam, com certa gentileza.”

“Gentileza?”

“Sim. Gentileza.”

Ficava olhando — pelo canto do olho — lhe olharem como se não a estivessem olhando (as mulheres). Havia passado a comoção do seu “volta”. O reverendo dissera que ela havia “voltado dos mortos, retornado do Hades” (e não da inocência para a qual a morte era uma surpresa ainda mais dolorosa)…

Todos eram muito gentis, de uma maneira que tornava aqueles canibais uns fidalgos inocentes da mais alta estirpe de delicadeza que comia carne humana para homenagear a morte de cada inimigo portador de força…

Ela ia chorar. Talvez devesse caminhar. Mas começou a chover, muito suavemente, e então…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho