E para que ser poeta em tempos de penúria? (1)

Para que poetas em tempos indigentes?
Ilustração: Rettamozo
01/09/2010

Para que poetas em tempos indigentes?
F. Hölderlin

Insepulta jaz a pergunta acima
e bem acima do motivo
supostamente íntimo
visto no verso de um dos últimos poemas de Roberto Piva.

A inquirição, franca, fende a fina porcelana de cera dos ouvidos.
Sabemos da penúria,
porém não queremos saber dela.

Plantamos a flor carnívora,
mas desviamos a vista
quando o jardim do pecado
castiga com isso:
indiferença, acídia, tédio mortal
no peito de avestruzes
(os do estômago forte
para literatura feita
com lixo).

LIXO, LIXO, LIXO:
afirmou três vezes, o Roberto
Pedro da não-negação pívia,
no vôo de Gavião livre
acima da poesia brasileira
do avestruzismo afundando
no tapete vermelho
dos prêmios paulistas
que nunca foram para as mãos
paulistanas desse ímpio gentil,
suave no convívio
porém feroz na recusa
de comércio literário
& negócios do filth.

Tardia lição de um pária,
a pergunta posta no lixo
basta como indagação direta,
resta como interrogação pura
de dentro para fora da sua vida:
para que ser poeta em época
de bosta blindando tímpanos?

Ainda incomoda muita gente,
porque perguntar é claro que ofende
(e elefantes chateiam muito menos,
naquele refrão de cantilena),
a penúria a pesar mais, muito mais, do que setenta e dois mil paquidermes do circo embutido no círculo de dúvidas levantadas pela palavra indicando [múltipla escolha, agora]:

A) “Um idoso precisando de grana,
com choro e sem vê-la?”

B) “O solitário sem recursos,
num prédio degradado da Sampa
que faz a delícia dos cineastas
de olho de vidro?”

C) “Aluguéis em atraso, dívidas,
a necessidade de tratar os dentes
de ilustre entre os inadimplentes?”…

D) “Etc etc.”

[OBSERVAÇÃO: Dessa forma, é doce morrer no mar
da pergunta debitada ao desalento, remetida ao gosto pelo autoflagelo,
o fingidor a fingir que a penúria seria só a do poeta,
o mais marginal dentre os vates menos ilustres da nossa lira,
pois Piva não teve sorte na vida, nenhum amigo na Folha
e foi curto minuto no noticiário noturno apenas quando morreu
en passant para a TV voltada para a montanha do Lixo.]

“E para que ser poeta em tempos de penúria?”
é um dedo que nos acusa, trêmulo,
e não devido ao Parkinson do poeta.
O fato é que ultrapassa do tecido biográfico,
dos dados de cartório, geografia e outros
[PIVA, ROBERTO – São Paulo, 1937/2010]
e progride em acusação, do patamar da pobreza
para um geral “mal-estar na cultura”,
uma doença suspensa sobre as cabeças
acima das quais paira a cinza
da pergunta do bardo por anos e anos
tentando, na ignorância da penúria,
“ressuscitar a arte morta da poesia;
errado desde o início,
não rigorosamente,
mas vendo que havia nascido
num país meio selvagem,
fora de época”.

Isso é fragmento de Pound,
ou um centavo da sua franqueza
dedicada ao mesmo objeto
do falso desdém
de Marianne Moore:

Eu, também, não gosto dela.
Lendo-a, no entanto, com um
perfeito desdém por ela,
descobre-se na poesia
um lugar, afinal, para as coisas
autênticas.

“Delicada situação financeira” etc.,
referiram alguns necrológios em lamento
impresso de delicadeza uníssona,
eu reconheço, para com a memória de Piva.

Com certeza, delicada era a espessura
de nuvem
do seu sistema (?) de vida
refletida no espelho d’água
de uma foto fazendo tremer,
na imagem do poeta sessentão,
a marca dos anos finais
de sol negro no seu endereço
de solidão no centro populoso
da maior cidade da América Latina:
Aqui morou um menino de fazenda
transformado em poeta urbano
de capa do terceiro caderno
que o mendigo depois usa
com finalidades higiênicas.

Ilustração: Rettamozo

 

Nas páginas de jornais,
quando acontecia de se lembrarem dele,
Roberto sabia encenar para a estagiária
enviada da redação (a propósito de qualquer besteira),
o lirismo transverso de uma espécie de anjo
decadente a fazer aquelas perguntas tortas
pelo mau uso do cachimbo fora das bocas
da moda em Liberdade, Vila Olímpia
e Moema.

Não era, entretanto, um amador em espetáculo
performático (y otras frescuras),
e o caso da pergunta que ele deixou perfilada
num verso até simples,
adverte o tempo de aposentar poetas,
abre o verbo,
diz claramente:
em épocas de penúria deprimindo o espírito,
a poesia se torna absurda,
sem sentido, dispensável, inútil,
deslocada e carente de público
inclusive para ouvir o tilintar
do dinheiro, realmente,
num poema de Ritsos:

Tarde sombria como um bolso vazio.
No fundo do bolso um buraco doce, penugento.

Por lá passas um dedo em segredo,
tocas a própria coxa como se tocasses
outro corpo, maior, estranho, profundo
– o corpo da noite ou da tua morte.

Por esse buraco caem as moedas todas,
mesmo as de ouro, cunhadas com a efígie
esplêndida e jovem do Príncipe dos Lírios.

LEIA A CONTINUAÇÃO

[NOTA: O poema já estava terminado – exatamente no dia 3 de agosto, um mês após a morte de Roberto Piva — quando me deparei com a seguinte notícia, conservada na internet: 13 de junho de 2010… O editor Massao Ohno, de 74 anos, morreu anteontem à noite na Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba, onde estava internado havia uma semana etc. Apesar disso, decidi manter o verso referente ao Massao – verso que ainda o toma por vivo – íntegro no seu engano, uma vez que a notícia sobre a morte do Editor, despercebida, é mais um exemplo dos “tempos de penúria” de que fala o verso do Piva. FERNANDO MONTEIRO]

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho