Dias de febre de literatura na cabeça (1)

Venho me perguntando — assim como muita gente interessada — no que diabo haverá de se tornar a literatura, com e sem aspas, mais adiante.
29/01/2015

Venho me perguntando — assim como muita gente interessada — no que diabo haverá de se tornar a literatura, com e sem aspas, mais adiante.

Mais adiante? Talvez tenha (já) se tornado na coisa que mais receamos: na anódina disputa por narrar, tão só narrar etc., todo mundo muito sabido sobre truques, por exemplo, de algum espanhol ou chileno mais cerca de matas e embolañodores de racontos da ficção up-to-datemente “descoberta” para trabalhos acadêmicos e/ou ensaios em jornais especializados que ainda sobrevivem [como este].

Fecha parêntese?

O poeta Auden recordava que pertencera a um mundo em que saía, geralmente às tardes, entre outras coisas para tentar acertar com o livro que provavelmente estava à sua espera na estante de alguma livraria empoeirada e mal iluminada, na qual teria que até roubar aquela obra que lhe estava “destinada” — caso não dispusesse da quantia para honestamente levá-la ao caixa (ainda que na incerteza sobre ser mesmo aquele o livro do Mistério audeniano daquela específica tarde etc.).

Hoje, não sobreviveram os mistérios e, talvez, não haja mais livros excetos de submistérios de mosteiros, manuscritos antigos e violoncelos y seitas saídas da imaginação dos Ecos & imitadores, pra se vulgarizar em “romances” ensinados nas oficinas de monotonia inesgotável…

Para nossa surpresa, livrarias se tornaram muito grandes e muito chatas, além de cheirando a café-e-doces, com gente diabeticamente “apaixonada” pela literatura sem insulina (ou com insulina demais?), não sei, literatura, enfim, que não está à espera de bárbaros nem de Auden nenhum — barões e cavalheiros longe de San Francisco e que não mais existem para os Kaváfis e os Pasolinis de um tempo que maturava as coisas, a hora da chuva e os fragmentos de morte contidos na lua sobre os limões das colinas de homens e mulheres preferindo a solidão ao rebanho.

Bem, Literatura é danação.

Por que, então, ela está atraindo burocratas, abstêmios e monótonos? Acabei de publicar aqui, nas três últimas edições de 2014, parte de um ensaio sobre um autor americano menor — John Steinbeck — que se torna um gigante, se comparado com quaisquer dos seus compatriotas hoje em atividade marqueteira (antes de tudo), junto com suas editoras preferindo-os parecidos com, ãnh… Richard Gere? Ou pelo menos com um Gere em roupas baratas, sob a réstia de luz de algum abajur ordinário, olhando para o leitor com o sorriso cúmplice do ato de enganar e ser enganado.

Sim, porque autores(as), agora, precisam ter “cara de autores(as)”. Suas feições, atividades e trajetórias são itens da composição de preço do produto. E você compra esse produto — e, pelo menos eu, largo o dito cujo, no máximo cinco páginas depois daquele início lido na livraria-cafeteria-imensa, começo que, de pé, parecia até interessante… até encontrarmos, em casa, sentados na poltrona, a súbita mão do macaco que nos mostra um fazedor de narrativas a cometer o dever de casa do leite das crianças.

Isso vale tanto para a literatura internacional quanto para aqueles tupiniquins que telecomizaram a prosa local — uma vez que a poesia parece bem mais saudável, neste momento (desde quando abandonada por editores que não se importam com versos e contos).

Os contos, aliás, estão bem melhores dos que o nosso Romance — essa doença que nos leva a escrever, detidamente, sobre coisa alguma (ou quase). Isso não seria problema se, ao menos restasse, sob as fórmulas, a receita de conteúdo humano de um Dias de febre na cabeça (Confraria do Vento, 2014), livro de contos de Nivaldo Tenório.

Foi um dos raros títulos da literatura brasileira que me satisfizeram plenamente, como leitor, nos últimos cinco anos. É tão surpreendentemente bom que eu não sei se este livro, já em segunda edição, teria sido premiado em alguma dessas atuais pistas de corrida de cavalos que pululam como moscas, entre prêmios e “prêmios” que surgiram do dia para a noite. Pois se trata da obra de um autor — e com isso eu quero dizer de alguém interessado no drama (velha palavra!) interior mais fundo sob a camada de rotina dos dias de seres dissolvendo vivências e recordações das quais não podem se desatar pela banalidade da cabeça fresca robotizada pelo agora do mundo lavável no qual também podemos — já — comprar os nossos passados pasteurizados nos supermercados.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho