Diálogo com Francisco Brennand

Vi uma foto de Anna Akhmátova em hebraico. Não me surpreende a súbita inspiração de um professor da Universidade Bar-llan, em Israel, de traduzir o seu livro para o hebraico.
Anna Akhmátova por Francisco Brennand
01/10/2009

“Recife, 27 de agosto de 2009

Propriedade Santos Cosme e Damião – Várzea – Recife

Prezado Fernando Monteiro,

Vi uma foto de Anna Akhmátova em hebraico. Não me surpreende a súbita inspiração de um professor da Universidade Bar-llan, em Israel, de traduzir o seu livro para o hebraico.

Aqui, entre os meus alfarrábios que formam um conjunto parecido com um diário, encontra-se uma personagem fictícia de um cozinheiro coreano que resolve escrever uma carta indecifrável. Tentei saber um pouco a respeito do sistema de escrita coreano e acabei descobrindo não haver um consenso entre os lingüistas sobre a identidade desse idioma, freqüentemente classificado como um ‘idioma isolado’. Sem explicação, achei isso de uma nobreza tamanha devido ao fato de uma pessoa se expressar num idioma que jamais será universal. Não estou fazendo nenhuma digressão e vou direto ao assunto: o seu longo e admirável poema Vi uma foto de Anna Akhmátova ficará dentro da literatura brasileira de todos os tempos como um ‘idioma isolado’. Foi isso o que me ocorreu. Pode, inclusive, nem ser um elogio, mas o efeito substancial desses versos é de tal forma avassalante que, por natureza, tornará inevitável sua exclusão. Lidos, com ou sem atenção, eles são únicos e plurais. E estranhos, muito estranhos. Que lembranças invulgares, que associações ao mesmo tempo espirituosas e fisiológicas, como se estivéssemos diante de uma batalha sem tempo, de uma carnificina ímpar (e você dentro dela a vociferar, vez ou outra recordando a foto de Anna que também é o tempo):

O tempo que não passa
porém cancela nossas pegadas nele.

Escrevi “fisiológicas”, mas essa palavra não me agrada. Nada de fisiológicas, na verdade, e sim carnais — tanto quanto espirituosas — as associações e lembranças alinhadas nesses versos estranhos, repito, porque, nas múltiplas visões de Anna Akhmátova, você se “permitiu ver a alma na carne/ como numa prisão que Dido faz arder”. Não vou abusar de citações para justificar a inconveniência de minhas palavras diante dessa fogueira.

Diz você que é a sua visão do mundo. Em 85 páginas você escreveu a história da humanidade. Pelo menos a que nós conhecemos, alguns de nós. Outros, jamais a conhecerão. Não pretendo ser um profeta fácil. Agora, de uma coisa estou certo, dentro de muito pouco tempo Vi uma foto de Anna Akhmátova será traduzido em diferentes idiomas, a começar significativamente pelo hebraico.

Abraço do amigo,
FRANCISCO BRENNAND

P.S.: Qual tem sido a reação do público e da crítica local e nacional? Talvez minhas previsões não tenham cabimento. Teria muito a acrescentar sobre o poema da foto de Anna, mas prefiro voltar a reler:

Havia um mapa traçado na pélvis,
uma naturalidade na nudez total,
um despojamento, uma cor no calcanhar…

Roberto Alvim Corrêa, que eu conheci de perto numa de minhas exposições no Rio de Janeiro, admitia que, em se falando de poetas, não é prudente citar seus versos a fim de interpretá-los. No seu caso, é impossível fugir à tentação.”

Você associaria o Anna a algum outro poema da sua predileção, Brennand?

“Associaria aos poemas de Montale, ao Anabase e alguns outros pelos quais caminhei, como no seu, à vontade pela vastidão de palavras jamais sem significados, mas, pelo contrário, amplamente significantes em todos os seus pormenores. O Anna poderia ser um poema de leitura prolongada sempre a viva voz, noite e dia, como as narrações das Mil e uma Noites, redescobertas nas madrugadas quando o dia começa a clarear diante das cinzas da fogueira ainda com algumas brasas em forma de flor incandescente. Um poema de substância, um centro misterioso que imanta todas as partes…”

Ter um leitor como Brennand lendo um livro que publicamos é, eu sei bem, um privilégio muito raro, neste atual cenário de leitores rasos — e até de não-leitores (?) afundados em livros e mais livros, por paradoxal que pareça o mundo da oferta formidável de livros lidos (??), mas não compreendidos. Fomos nós dois dos amigos mais próximos do “legendário” leitor destas plagas, depois de Willy Lewin*: o recifense do bairro das Graças, Tomás da Veiga Seixas (Francisco, quando assim recordei Tomás, simplesmente concordou com a cabeça).

Como Borges, Seixas fazia questão de ser leitor (“atividade posterior e muito mais refinada do que a de escrever” — JLB) antes de ser escritor. Além de “Leitor” como seu título de nobreza por excelência, Tomás podia ostentar — como poucos — o pesado (e tão vulgarizado) “título dois”, ou seja, o de escritor, como autor dos admiráveis Adeus à adolescência, Sonata a Lilian e A casa dos sonâmbulos, três obras solenemente ignoradas desse Brasil que, não por acaso, será levado a ler, certamente, os três livros já disponibilizados, na internet, pelo famoso “autor” Paul Rabbit, conforme acabo de sombriamente ler no antigo site da livraria Kriterion, do poeta Jairo Lima (em Natal-RN; http://www.kriterion.zlg.br/page65.html):

“JUMENTOS VÃO DISPOR DE MAIS CAPIM

O escritor Paulo Coelho disponibilizou ontem, em seu blog, três livros cujos direitos ele diz não pretender vender a editoras nos próximos dois anos. Os textos podem ser baixados de graça, no formato PDF, em português, inglês e outros idiomas, pela página paulocoelhoblog.com/internet-books. ‘É meu presente para vocês’, ele escreveu no Twitter ontem, quando completou 62 anos.”

Francisco Brennand apenas sorri. Sua secretária leu (e detestou) um dos livrecos de Rabbit. E esse foi todo contato que o grande pintor até agora já teve com o “autor” de O alquimista — esse hodierno “São” Paulo que transforma merda em moeda.

Poemas longos e/ou narrativos não são da tradição literária de Pindorama. Você arriscaria dizer por que somos assim, abraçados aos “estados d’alma” (oh!) em livros de poemas que são, em geral, lidos salteadamente, abrindo-se ao acaso alguns livros úmidos mesmo dentro de piscina vazias como a boca de um bebê sem cabeça?

Francisco Brennand me olha, desinteressado da pergunta à la Almada (ele conheceu o grande Negreiros, foi vizinho do surrealista luso, ambos lisos e livres em Paris). E não responde nada, é claro. O pintor versado em literatura como poucos escritores “deste país” do presidente iletrado (e orgulhoso de sê-lo, e de nunca ter escrito uma carta, um bilhete válido para se ingressar na ABL), sabe o que Dámaso Alonzo** pensava a respeito da recepção de poesia: no melhor dos casos, só poderia restar uma chance de recuperar os seus leitores, modernamente, talvez pelo retorno ao poema narrativo — tradição hoje perdida, do pantanal manoelino ao charco das campinas de sub-poetas surgindo por toda parte (como as formigas sobre a “serpente morta” do profético texto de Ingmar Bergman, escrito pouco antes da sua retirada para Faro). Brennand calado, como se a pergunta não houvesse sido feita, no seu ateliê atulhado de livros lidos: livros anotados, duplicatas de livros velhos e novos etc. Aliás, o pintor pernambucano-universal tem nas mãos, neste momento, o seu exemplar do Vi uma foto de Anna Akhmátova todo notado pela letra um tanto tremida, e prefere continuar a falar de Tomás — ou “Bebé”, como ele chama.

Levanta-se para dizer que lamenta a ausência definitiva do amigo, porque já não poderemos “levar este poema para debaixo daquele terraço dos fundos da casa assobradada” (e assombrada, acrescentaria eu) do ensaísta de A casa dos sonâmbulos, no ainda elegante bairro das Graças, onde foi lido aquele poema de Saint-John Perse com o “escrito na porta” reiterado profeticamente, debaixo da chuva que martelava (por que toda chuva “martela” os telhados, ó senhor clichê?), uma chuva recifense raivosa e magoada, um “toró” de Ascenso sem remissão, um aguaceiro das monções da malásia lenta e imersa nos rios lamacentos dos romances de Conrad, nos misteriosos nevoeiros suspensos sobre a água. Em especial, aquele que quase oculta (enquanto ao mesmo tempo dilata) o terrível “Brown” desafiando Jim na sombra do Patusan, de modo a fazer com que o rapaz se perca (“eu o conheço, eu conheço!”) e seja, afinal, cindido naquelas novas certezas que o estavam redimindo até chegar o horrível pirata para condená-lo como Billy Budd está condenado também: “sim, condenado a morrer, a inocência condenada, toda inocência está condenada (e, sim, termina por ser inapelavelmente castigada, Nelson Rodrigues), porque não pode prosseguir viva e sem culpa — mas, pelo contrário, deve restar sacrificada, pendendo do mastro da gávea, o canto doce estrangulado na boca já agora desfigurada, a beleza pendente em torta rigidez de enforcado, a horrenda língua tumefacta, os cabelos leves de rapaz soprados por um vento triste.

“Ficamos todos em silêncio quando Bebé terminou de ler aquele poema de Perse, e também ficaríamos agora, quando fosse terminada a leitura do Vi uma foto de Anna Akhmátova debaixo da chuva, ou, se fosse um dia de cínico verão, sob os acordes tristemente majestosos da única música que Luchino Visconti poderia ter aproveitado no filme Morte em Veneza: a 5ª sinfonia em dó sustenido menor, de Gustav Mahler.”

O Mahler que entrou na terrível frase de Leonard Bernstein, dita há cerca de 30 anos: “Este é o século da morte, e Mahler foi seu profeta espiritual”.

* Os que foram profundamente influenciados por Willy Levin — Lêdo Ivo, por exemplo — precisavam fazer a necessária justiça a esse importante intelectual brasileiro.

** Este Alonzo — todos sabem — existiu realmente…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho