Deveria haver um prêmio nacional de literatura anualmente oferecido a…

A desventura de se percorrer as estantes das colossais livrarias onde o livro virou apenas um produto
Ilustração: Rettamozo
01/01/2012

O começo de um romance abandonado:

Deixei o Facebook. Deixei?

Ainda não sei se deixei. Parece incrível ter deixado — e parece incrível ter entrado, ter suportado aquilo, ter vivido umas coisas que…

A primeira vez que ouvi falar em “rede social”, tive uma antipatia instintiva. Uma mulher me disse que agora tudo era em “rede”, e ela só faltava ter uma rede no cabelo, me metendo na rede de um filme que eu não queria fazer e terminei não fazendo. Isso é outra história.

Dela foi que ouvi falar primeiro em rede, parecendo uma conspiração sussurrada, uma espécie de segredo consistindo em dizer a expressão “rede social” como quem dissesse: “ou dá ou desce”.

Desci da rede.

Subi quando? Quando foi que entrei na rede de Zuckerberg sem ter participado, nunca, de Orkut, Twitter, essas merdas — não que o “Feicebuque”… Lá, eu só chamava de “Feicebuque”, e, às vezes, “feicebuíque”, dizendo que era em suassunês legítimo, porque… Eu vou explicar a piada? É uma merda explicar piada: Buíque, sertão, armorialismo, o pavor que Ariano tem do inglês se metendo na língua portuguesa, frescuras dele (no meio de algumas coisas que não são frescas). O resto é. Mas deixa Ariano lá com as coisas arianas dele. O tema aqui são as mulheres que me destroçaram a vida no Face, Feice, Foice — agora que foi-se, sim, para mim, porque matei uma moça.

O título definitivo talvez pudesse ser Mulheres do Facebook. Não cheguei a decidir se seria mesmo esse — mas, enfim, pelo menos podem relaxar as meninas que faziam parte da minha antiga “rede”: o romance foi abandonado há um ano, não para evitar encrenca, etc., mas unicamente porque, na área do romance, já não se trata de fazer literatura. Do que se trata, não sei exatamente — nem quero saber.

Não estou mais nesse jogo. Pulei fora, de volta para o território de abandono preferencial dos editores (a poesia — deixada em paz, “quéta” no seu canto), enquanto o sábio Gay Talese, em Vida de escritor, adverte a nós todos (ou quase todos):

Não, você não está sofrendo de “bloqueio de escritor”, está apenas mostrando seu bom senso ao não publicar nada por enquanto. Você está mostrando consideração para com os leitores ao não lhes dar texto ruim. Muitos escritores deviam fazer o que você está fazendo — não escrever. Já existe muito texto ruim por aí, para que mais? As estantes dos Estados Unidos estão cheias de livros de segunda classe de escritores de primeira. Muito deles têm um público cativo e por isso os editores publicam suas besteiras. Eles publicam tudo que vende. Mas os escritores deviam ficar bloqueados. Seria uma coisa boa para a reputação deles, para os custos de produção das editoras e para os padrões do público leitor em geral. Deveria haver um prêmio nacional de literatura anualmente oferecido a certos escritores por não escrever.

Seja como for, por ora chega de romances, pelo menos para mim. Aos noviços, aos que estão aportando agora nesse cais menos de sombras do que de certas e determinadas manobras, a certeza (que deveriam ter) de que escrevem para uma quase totalidade de zombies entorpecidos pelos maus romances à venda nas mega-livrarias brilhosas como catarro em parede.

Aliás, eu não adentro nenhuma sem o sentimento de algo perdido.

Melhor dizendo: com sentidos alertas para o modelo não ampliado das velhas — e quase misteriosas — livrarias de estantes meio empoeiradas (por que não?), mas de um novo “formato” assimilado dos centros de compras, dos shoppings só por acaso ofertando livros — best sellers ou títulos apadrinhados pelos variados interesses de Mercado — nas gôndolas, como holografias sob holofotes brancos. Se é que me entendem os que já saudavelmente espirraram em alguma quieta livraria de Trastevere (ou de Ipanema mesmo).

Estendendo um pouco esta digressão de gosto puramente pessoal — e talvez um tanto antiquado, girls —: eu não me sinto propriamente numa livraria nesses espaços luxuosamente monumentais, com livros cativos de apresentações suntuosas e capas envernizadas, mocinhas e rapazes também meio zombies/fãs de Caetano/Woody e Almodóvar, dedicados ao mister de (tentar) vender obras que nunca irão ler, os títulos como que disfarçados sob o clima de consumo de cultura ao som de música ambiente e mastigação de pão de queijo com capuccino no café-cultural-diversional das ditas cujas super-hiper-megas ou “lojas” de livros (assim as chamam os proprietários orgulhosos dos metros quadrados), etc.

O pattern triunfante vindo dos shoppings, isso tem pouco a ver com livros fora de moda — e, brevemente, fora das “lojas” de livros impressos… com os dias contados. Aqueles volumes antes acomodados nos pequenos espaços de silêncio acolhedor, sem música, café e “área educativa” para crianças brincarem com livros como objetos descartáveis na forma de elefantes, leões e hipopótamos supostamente simpáticos…

Comprei quase todos os meus livros — depois de muito procurar ou escolher — no ambiente de livrarias que foram fechadas e até mesmo demolidas para existirem só na memória do tato, dos dedos que examinavam às vezes volumes numerados e assinados, não escapando o leitor compulsivo de aspirar o cheiro das páginas de edições portuguesas, espanholas e francesas de folhas à espera das espátulas aposentadas.

Havia um ritual com o livro, uma cerimônia secreta no manuseio deste “produto” venerável e mais digno de ser embrulhado do que ser entregue num saco plástico com propaganda de croissants gordurosos e outras parcerias das novas livrarias guinchando o leitor para a compra do acessório — porque o Livro talvez seja um estranho no ninho das novas livrarias de espelhos, luz e vazio, como uma casa de milionários num antigo filme de Antonioni sobre o eclipse do humano na noite da incomunicabilidade.

A minha vista (míope, sim, pois quero estar fora do moloch suicidamente cultuado do Mercado) educou-se na luz discreta sobre as lombadas, sou do tempo de estantes até envidraçadas, onde os livros do estoque semelhavam às estantes de uma biblioteca particular, enquanto os lançamentos estavam nas bancadas acessíveis, sob a luz amarela de lâmpadas antecipando o tom dourado da tarde suavizando as coisas lá fora, quando o crepúsculo na Rua da Imperatriz vinha pôr sua cor na sombra das árvores curvadas sobre o rio cortando a cidade.

Num tempo em que tudo virou Mercado, eu sei que o livro — um dos “objetos” mais antigos do mundo — encontraria a sua vez de ser tratado como produto (neste momento, em vertiginosa mutação kindleriana e outras) em dezenas de telas de terminais de computadores que amputaram o prazer de descobrir um título apertado nas estantes das livrarias de outrora, antes do admirável mundo novo do e-book e do livro on-line, entregue pelos fantasmas sem mãos da virtualidade.

“Imperatriz”, “tom dourado”, “fantasmas” — essas são palavras propositadamente deslocadas para tratar do tema das livrarias espetaculares no lugar das livrarias ricas de modéstia e calma, expondo Suave é a noite como um mistério a ser decifrado. No lugar disso, agora entramos numa livraria-monstro do gosto desta época (será mesmo?) e todas as luzes violentas do comércio se acendem sobre capas gritando nos ouvidos dos meus olhos: compre, compre, compre!

A leitura não é — nem nunca será — estimulada por impactos. A grandiosidade equivocada (também de “bienais” e outras febres não de ratos de bibliotecas) não tem o que fazer em favor de livros de verdadeira qualidade, pelos quais o tempo vela e que, mais cedo ou mais tarde, você descobrirá secretamente penetrados no seu espírito de leitor à espera de encontrar o título à espera da sua alma — e não por anúncios e resenhas encomendadas.

“Alma”? Desculpem pela palavra (este é um texto de gosto démodé).

Ia eu dizendo que não se conquista (nem sequer os pequenos leitores) pelo aliciamento para o reino demolido das palavras, tipo “aqui temos um espaço para vândalos-mirins brincarem com livros como se fossem bonecos sempre-em-pé como uma bola quadrada; aqui você ouve música, aprende caratê e a fazer sushi de sobras de papel de ikebana. De quebra, vendem-se livros com sabor de literatura de plástico para o namorado que não esteja sabendo o que dar para a namorada” — essas coisas.

Em defesa das mega-livrarias, deve-se dizer que elas podem ser boas ao menos para marcar encontros: ninguém deixa de ver uma dessas grandes “lojas” de livros do tamanho de estacionamentos verticais, estonteantes de ofertas de 200, 300 mil títulos como que resguardados da leitura — e nenhuma obra de salvação que possa evitar o suicídio de um jovem autor inédito desesperado (poeta, sem dúvida, Dona Luciana!)…

O velho Livro vem do enrugado pergaminho e do silêncio de claustro das universidades medievais empoeiradas. Debaixo do pó, elas preservaram o mundo da antiguidade clássica no meio do ambiente da seita perdida que o imperador Constantino salvou ao torná-la religião do Estado (há obras sobre isso, lacradas sob liso papel celofane, na seção de livros de arte das completas, maravilhosas, incríveis “MacBooks”, que nem são mais livrarias, ou não mais apenas isso, essa palavra que lembra alfarrábio, manuscrito, sebo, vela, pena, papel de arroz, percalina, douradura, encadernações inglesas, gravuras e lembranças da margem esquerda do Sena transferida, afinal, para a direita do capitalismo triunfante do final do século 20).

E uma livraria da nova cultura é mesmo uma coisa do 21, do jogo fartamente iluminado para admirar e comprar (e ler? [*&$?? sinais de dúvida]) os livros entregues em sacolas de plástico reciclável, colorido e artificialmente aromatizado…

Por que procurar um livro obscuro, para que comprar o “Judas”, numa imensa livraria cheia de estudantes comemorando o novo Dia de Matar o Índio? Numa velha livraria, pequena e cheia de pó, se você não achava o livro já-não-lido de Thomas Hardy, terminava levando another, algum outro livrinho que você não buscava e que se revelava capaz de (oh!) mudar a sua vida, debaixo da luz fraca, no meio da relativa calma do antigo lugar dominado por uma porta de guizos.

Mas quem quer calma? E quem ainda quer ouvir guizos, címbalos, sistros, quando todos parecem preferir percussão metalizada, sintetizada e aumentada entre as escadas que dão acesso ao telão instalado no andar de cima, o andar eletrônico das benesses do Mercado (“que recupera tudo”)?

Numa antiga livraria demolida você poderia encontrar até um livro desconhecido de George Katsimbalis — aquele que gritava para os galos da Ática — e quem sabe também o grande amor da sua vida, calçada com galochas, num sábado de chuva (“ela entrou, sob o som delicado da porta, e você a viu sob a luz coada, a fronte molhada dos pingos na franja um tanto juvenil”)…

Poesia! Pra que serve a poesia numa grande e dispersa livraria sem estantes para o gênero morto? O tempo ruge, a calculadora urge, a época é fria e ninguém mais usa galochas — mesmo nos sábados antigos dos novos romances com gosto de pão de queijo frio. E o velho poeta argentino Juan Gelman (gigante ainda vivo, enquanto o verdadeiro gigante da ficção portenha — Ernesto Sabato, e não o ceguinho Borges — faleceu faz um ano) traz “para dentro” o fundo da irônica recusa que este texto começou celebrando em ritmo de rede-cultura:

El juego en que andamos

Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta salud de saber que estamos muy enfermos,
esta dicha de andar tan infelices.

Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta inocencia de no ser un inocente,
esta pureza en que ando por impuro.

Si me dieran a elegir, yo elegiría
este amor con que odio,
esta esperanza que come panes desesperados.

Aquí pasa, señores,
que me juego la muerte.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho