Coppola no Recife

Naquele verão, Francis Ford Coppola fez da capital pernambucana sua casa, sempre acompanhado de boas doses de caldo-de-cana
Ilustração: Ramon Muniz
01/02/2008

1.
No final de 2003, um visitante realmente ilustre chegou, incógnito, ao Recife.

Vindo de Foz do Iguaçu, o cineasta americano Francis Ford Coppola havia circulado aqui em Curitiba, durante mais de uma semana, sem ser reconhecido, até que um cinéfilo o “descobriu” e o diretor acabou fazendo até palestra para alunos da Universidade Tuiuti e cozinhando nhoque com tofu, na casa do ex-governador Jaime Lerner. Os jornais deram tudo isso, rompendo com o expresso desejo do turista — nada acidental — de passar pela capital do Paraná como um anônimo de camisas berrantes e charutos ecologicamente incorretos, etc.

No Recife, a sua temporada brasileira terminou junto com o ano — e o cineasta conseguiu ser mesmo um “turista” entre outros, pois Coppola pôde circular tranqüilo, não foi reconhecido no Recife nem em Olinda (onde se hospedou no hotel “Sete Colinas”, um belo casarão transformado em pousada, numa daquelas ladeiras íngremes). Como um gringo de barba branca, boné e óculos mais do que escuros — para não ser de novo reconhecido, eu suponho —, o cineasta reclamou apenas do calor e, na agitação do Natal, tomou muito café e visitou as praias do litoral sul pernambucano.

O dono do hotel (amigo de um amigo) foi quem me avisou da entrada do hóspede mais célebre que até então o seu estabelecimento havia recebido. Já na manhã seguinte, tendo eu passado lá por pura coincidência, ele me mostrou a ficha com um garrancho ilegível como assinatura, e me pediu, “pelo amor de deus”, que não dissesse nada a ninguém, uma vez que o “cara queria ficar na dele”, sem alardes, sem imprensa, fotos ou outras chateações. Só abriu o bico porque tinha sabido que eu era louco pela trilogia do “Chefão”, etc. Disse que não havia assistido a nenhum deles, mas, assim mesmo, tinha perfeita noção da celebridade do hóspede que, por sinal, achava “meio mal-encarado”.

Que nada. Coppola surgiu nesse momento mesmo na recepção e, descansado, foi receptivo como quase todos os ítalo-americanos. Queria alugar uma van e eu me apresentei para lhe conseguir isso, fingindo não saber quem era ele, naquele momento.

Foi o melhor caminho. Coppola é atento, pega tudo no ar, é muito curioso. Quer saber sobre tudo, provar das coisas (até caldo-de-cana de rua, com moscas voando), sem frescura nenhuma: do caldo verde-escuro, ele tomou três copos, com gelo batido, no velho Mercado de São José (o primeiro lugar aonde fomos, já na van), depois ficou meio enjoado, mas passou.

Só no almoço é que eu confessei saber, o tempo todo, estar na companhia de ninguém menos que Francis Ford Coppola — por ninguém mais reconhecido, aqui.

Coppola atacou uma “sinfonia marítima”, e sorriu, satisfeito com a comida, perguntou se eu era jornalista, disse que não iria dar entrevista nenhuma, mas um homem satisfeito com um bom prato de comida diz isso de um jeito simpático. Perguntei pelo motivo da viagem. Ele fez mistério sobre os novos projetos — todo cineasta faz —, disse que tinha vindo “levantar umas locações para seu novo filme, Megalopolis”, junto com o desenhista de produção, Dean Tavoulares, e o assessor Tony Dingman (que já haviam retornado, de Foz, para os Estados Unidos).

Essa informação já havia aparecido nos jornais curitibanos, até se perder a “pista” de Coppola aqui no Recife (cidade recomendada por seus “amigos brasileiros”, entre os quais citou o músico Airto Moreira, que vive na Flórida há muitos anos). Coppola registra tudo num caderninho enfiado no bolso da calça, riscado com letra graúda e alguns desenhos rápidos, bem esboçados. Em Curitiba, alguns jornalistas lhe deram novas dicas, também anotadas entre um café e outro (ele toma café como um viciado). Por incrível que pareça, a conversa foi indo assim, no início: ele falando de café, do turco, do africano, dos cafés dos ingleses (que “nunca entenderam o princípio do cafezinho, e servem sempre em xícara grande, acompanhado, como um chá, de biscoito, brioche, pão de queijo”)…

Coppola adorou o pãozinho de queijo, que só presta “muito quente”. Descendente de músicos e padeiros, de imediato sacou que a massa do pãozinho não mantém o sabor, ao esfriar e endurecer. É um glutão de suco, de pães e de pratos como os que repetiu duas vezes (a “sinfonia marítima” e também a “cartola” — ficando impressionado que “banana frita com queijo resultasse naquele “incrível sabor”)…

Uma barriga enorme tira qualquer possibilidade de porte elegante do grandalhão desajeitado que ele é (quando a sua faca caiu no chão bem encerado do “Leite”, FFC a pegou e continuou comendo com ela, mesmo depois que o garçom se acercou, presto, com outro talher reluzente). Como eu disse, ele não tem frescuras — nem muita paciência.

É agitado, atento, e meio apressado, de uma hora para outra. Quis engraxar os sapatos e, assim que o menino lustrou o bom couro, fez um gesto de stop, pagou e saiu para o sol “de lascar”, conforme ensaiou comentar, em português (porque gostou do som, aprendeu, acha graça no verbo de vogais abertas). Tem bom ouvido e não perde nada do que vê com uns olhos ligeiramente estrábicos, debaixo das sobrancelhas que precisam ser aparadas quase diariamente. (Coppola não as apara, é evidente, quando viaja sozinho — levando também alguns dias para se acostumar com camas novas e cheiros penetrantes, de flores e temperos exóticos. Quando esteve na Índia, passou meses sentindo o cheiro de curry por toda parte, de volta aos EUA).

Não fala de cinema — bem, pelo menos se ninguém falar. Mas elogiou a filha (Sofia) como diretora que “a melhor crítica passou a considerar um talento firme, desde Encontros e Desencontros”. Pai é pai. Quando mencionei o trabalho de Scorsese, não fez comentário algum.

Estava lendo uma edição de bolso — que nunca saiu dali o tempo suficiente para que eu lesse o título da brochura. Quando lhe perguntei, disse que não estava lendo nada, no momento, e eu preferi não “pegá-lo na mentira”, mencionando o volume, que, aliás, ele poderia dizer que era um dicionário (até podia ser, mas não era). Ficamos nisso aí, em matéria de livros — exceto pelo fato do cineasta mencionar Machado (“li um romance dele, sobre adultério”) e também Jorge Amado (“nunca li nada desse. Vi um filme baseado em Dona Flor, dirigido pelo marido da Amy Irving, mas não gostei”).

Estive com o diretor durante os três dias de aluguel da van (do meu cunhado, Walter, que faz passeios), e posso dizer que nos demos bem. O americano gostou do despachado Walter, conversou muito com ele — até mais do que com o aqui. Levei uns vídeos, para que autografasse as capas, e ele assinou dentro, no rótulo de papel meio plástico, onde não pegou bem a tinta do garrancho que ele fez: FrcvisFCppla

No sábado, ia embarcar de volta. E eu lhe dei um talha, de presente. Que não sei se deixou no hotel, ou se a levou com ele.

2.
Levou? Bem, acontece que, três dias depois, Walter reviu “o Coppola” no bairro do Pina. Portanto, não tinha viajado, mas havia ficado aqui mesmo durante a passagem do ano, fazendo mistério ou sei lá o quê.

Walter encontrou com ele numa padaria, comendo um sanduíche de frango assado. “Era ele mesmo?” — perguntei. E Walter não hesitou: “Era, lógico. Falei com ele. Ofereceu do sanduíche, até”.

Calculamos que agora não estivesse precisando mais da van (necessária para ir conhecer os arredores, as praias de Calhetas, Porto de Galinhas e outras).

Só não entendi por qual motivo ainda não viajara, quer dizer, de volta pra Nova York.

Passaram-se uns dez dias, no janeiro quente, e voltei a ter notícias, digamos, de Coppola: meu amigo Rubem Rocha Filho, que mora em Boa Viagem, me disse que tinha visto um sujeito, no shopping, que “era a cara do Coppola”. E eu balancei a cabeça: “Pois era ele mesmo”. E Rubem riu, pensou que fosse brincadeira.

Ontem, foi a minha vez. Coppola estava… Bem, não posso dizer onde ele estava.

O americano grandalhão também ficou meio sem graça, e depois riu, perguntou pelo Walter. Terminou dizendo que tinha até um vídeo, um filme para mim, mas que a fita estava no hotel (não era mais o “Sete Colinas”).

Isso foi num domingo. Já fazia mais de um mês desde que, na van, havíamos percorrido as praias que o cara fotografava onde não tinha nada para ver (só praia, céu e areia). E não tomou banho de mar, nem disse por que não tomava. E estava mais queimado. Naquela altura, eu pensei: Francis Ford Coppola não está nada bem.

Bem, ele estava diferente, relaxadão, com uma aparência desgrenhada — ou, pelo menos, desgrenhada demais para uma celebridade.

Não tenho bem certeza (na hora, não olhei direito), mas diria que ele estava de sandália de dedo — além do boné e dos óculos escuros (mas sem o paletó branco, que usou por aqui, mesmo debaixo do calor). Tinha aquela aparência “aclimatada” dos turistas que vão ficando por aqui, atendendo cada vez menos os telefonemas, mudando de endereço e encontrando uma graça qualquer em se mimetizar com a paisagem, como se fosse um vício, um visgo, uma dificuldade de prosseguir viagem (“uma coisa esquisita de gringo”, nas palavras do meu cunhado, acostumado com visitas de estrangeiros, curtas e longas).

Alguns taxistas, amigos dele, deduraram: costumavam levar o “gringo” (não sabiam quem era Coppola, é claro) em corridas que até se tornaram folclóricas. Um deles garantia que o americano tinha comprado uma moenda de cana, das portáteis, transportada no carro direto para o apartamento que o “doidão” havia alugado (fiquei pasmo) no decadente edifício Holliday.

“No Holliday? Sério?”

Isso mesmo. Não sei durante quanto tempo, Coppola se meteu num apartamento alugado no maior cortiço do bairro de Boa Viagem. E tomando caldo-de-cana e fazendo mais o quê — ainda incógnito — era difícil dizer.

“Talvez esteja esperando o carnaval, para filmar”, foi o palpite do Walter, que já estava até evitando dar, de repente, de cara com o gringo esquisitão. “Ele é famoso mesmo?” — chegou a me perguntar pelo menos duas vezes, achando que ninguém realmente importante no cinema ia ficar zanzando por Boa Viagem, dando bobeira e tomando caldo-de-cana dentro de uma quitinete do “prédio-zona”.

E quando eu lhe disse sobre o que eram os “Chefões” 1, 2 e 3, Walter ficou certo (“ah, bom”…) de que o diretor era mafioso diplomado. Até que, um dia, Francis Ford Coppola desapareceu da área, voltou, sumiu. Demos graças-a-deus.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho