Talvez Últimas palavras (Globo Livros, 2012) seja o mais franco — e, daí, contundente — livro já escrito por um doente de câncer, esse mal que permanece na treva das curas ainda “não-descobertas” por bem provável decisão da indústria farmacêutica nada interessada etc.
Mas o assunto aqui não é medicina, e sim um autor que estava pronto, digamos, para escrever tal livro, ou seja, dizer as suas últimas palavras sobre dezenove meses de luta contra a doença que muitos ainda relutam em dizer até o nome. Christopher Hitchens não: ele escreveu, com todas as letras, a “luta” que, para ele, já estava erroneamente colocada:
(…) um dos clichês mais atraentes de nossa linguagem. Vocês já o ouviram. As pessoas não têm câncer: elas são apresentadas como estando em luta contra o câncer. Ninguém que lhe queira bem omite a imagem combativa: você pode vencer isso. Ela está até mesmo nos obituários dos derrotados pelo câncer, como se alguém pudesse de alguma forma razoável dizer que eles morreram após uma longa e corajosa luta contra a mortalidade. Você não ouve isso sobre aqueles que sofreram muito tempo de doença cardíaca ou falência renal. (…) Não estou lutando ou batalhando contra o câncer — ele está lutando contra mim.
Oito capítulos
Os oito capítulos desse último livro de Hitchens (ele publicou mais de quinze, e foi colunista literário e editor contribuinte de revistas influentes como Vanity Fair, Slate e New Statesman) são todos assim, nesse diapasão não-encontrado em nenhum outro — que eu conheça — escrito por um doente que sabe que vai morrer, em pouco tempo, do mal diagnosticado em fase gloriosa, quando havia se tornado “um dos intelectuais mais influentes” da sua geração e já contava, na sua carreira de ensaísta, com best-sellers como Deus não é grande — ou como a religião envenena tudo, entre outros.
Oito capítulos? Não, não são, rigorosamente, oito capítulos, porque o oitavo traz uma nota do editor: “estes fragmentos foram deixados incompletos quando da morte do autor”.
Não há autocomiseração ou apelos a qualquer tipo de solidariedade sentimentalista em nenhum deles. Christopher Hitchens enfrenta todos os “estágios” da doença, seus prognósticos e fases de tratamento, sob uma lente implacável de autoexame e de exposição do que acontece no “mundo da Tumorlândia”, como ele apelida com um tipo de humor que quase assusta pela capacidade de penetração no estado de ânimo (ou muito mais do que isso) do canceroso e das pessoas que lidam ou tentam lidar com a delicada condição de ter se tornado um morto iminente, um ser vivente-moribundo — conforme ele classificou com precisão.
Aqui vai um bom exemplo
Desse olhar que não dispensa o olhar de ninguém, as falas dos médicos e até o regozijo — cruel — daqueles crentes que pensaram-e-diseramescreveram: “O ateu Hitchens agora sabe como Deus pune quem duvida Dele” etc. [Aos quais Christopher simplesmente responde: “Aqueles que dizem que venho sendo punido estão na verdade dizendo que deus não consegue pensar em nada mais vingativo do que um câncer para um grande fumante”.]
Mas eu falava de dar exemplo do “tom” desse poderoso-pequeno livro (que não é de “autoajuda” — pela-amor-de-deus! —, e aqui vai um dos melhores, eu acho, que poderiam ser pinçados de Últimas palavras (ou — no original —Mortality, cuja tradução literal não funcionaria bem em português):
QUANDO VOCÊ FICA DOENTE as pessoas lhe dão CDs. Pela minha experiência, com grande frequência eles são de Leonard Cohen. Então, recentemente aprendi uma canção intitulada “If it be your will”. É um pouquinho piegas, mas belamente interpreada, e começa assim:
If it be your will,
That I speak no more,
And my voice be still,
As it was before…
(Se for seu desejo,
Que eu não fale mais
E minha voz ainda seja
Como foi antes…)
Acho melhor não ouvir isso tarde da noite (…) Digo a mim mesmo que, de certa forma, conseguiria me arrastar à frente me comunicando apenas por escrito. Mas isso só é assim por causa da minha idade. Caso tivesse sido privado de minha voz antes, duvido que teria conseguido progredir no papel. (…) Ao dar minhas aulas de redação, começava dizendo que qualquer um capaz de falar também pode escrever. Depois de animar a turma com essa escada fácil, eu então a substituía por uma enorme cobra odiosa: “Quantas pessoas nesta turma vocês diriam que sabem falar? Quero dizer, falar de verdade?”. Isso tinha o devido efeito deprimente. Eu dizia a eles para lerem seus textos em voz alta, preferencialmente para um amigo de confiança. As regras são quase as mesmas: fuja de frases feitas (…) Então, descubra sua própria voz. E perder essa voz, essa habilidade (no caso) é ser privado de toda uma gama de capacidades: certamente, é morrer mais que um pouco. Meu maior consolo neste ano vivendo moribundo tem sido a presença de amigos. Já não consigo comer ou beber por prazer, então quando eles se oferecem para vir é só pela abençoada oportunidade de conversar. Alguns desses camaradas podem facilmente encher um auditório de pagantes ávidos para ouvi-los: são falantes com os quais é um privilégio simplesmente estar. Agora eu, pelo menos, posso escutar de graça. Eles podem vir e me ver? Sim, mas só eles falam, eu escuto.
Richard Dawkins escreveu — não por sentimentalismo (pois seria algo que ninguém decente se atreveria a fazer com a memória de um Hitchens) — que foi ele “o maior orador de nossa época”. É bem provável. No Youtube há bastante material gravado sobre o polemista CH debatendo sobre “deus” e outras (para ele) fábulas criadas pela esperteza e/ou insegurança humanas. Seja como for, para alguns — obscenos — “deístas”, esse jornalista e autor cheio de inquietações, teria sido “diretamente” castigado pela vingativa divindade ao morrer de câncer do esôfago no dia 15 de dezembro de 2011, naquela Houston onde esperava logo estar de volta do hospital, a fim de concluir alguns artigos prometidos a um editor amigo e, sim, “ver a exposição do rei Tut”… segundo as palavras finais da sua esposa (Carol Blue), no posfácio do tão curto quanto admirável Últimas palavras.