Câmera, literatura & cabeça

O melhor roteiro que eu já li não é uma adaptação de obra literária ou teatral: foi escrito diretamente para o cinema e leva a assinatura do dramaturgo norte-americano Arthur Miller
01/08/2012

O melhor roteiro que eu já li não é uma adaptação de obra literária ou teatral: foi escrito diretamente para o cinema e leva a assinatura do dramaturgo norte-americano Arthur Miller, mundialmente famoso. Trata-se do script para Os desajustados (The misfits), filme de John Huston cuja estatura de obra de arte só fez crescer com o tempo, a partir de um argumento tão perto da vida que o espectador parece poder tocá-la com a mão.

A obra resultante de um texto assim teria que ser poderosa como os mustangs perdidos no deserto dessa produção de 1961, na qual o trabalho de Miller e a direção de Huston pouco a pouco nos reduzem, na poltrona, a um silêncio sem pipocas ruidosamente mastigadas. É nada menos que esplendoroso o desenvolvimento da relação de quatro “perdedores” (os loosers do interesse permanente de Huston), reunidos em torno de rodeios matutos e acompanhados por estradas e escalas de solidão. No vigoroso preto e branco do filme, vemos os restos do “sonho americano” assustando uma casa inacabada ou emulando a violência física, sensual, na cidade e no campo, tudo sem retoques e com a mão firme do diretor de O tesouro de Sierra Madre a rematar os ingredientes de tristeza, falsa euforia e débâcle do entrecho criado pelo autor de A morte do caixeiro viajante — outra imersão na América dissecada sem a menor piedade.

No campo da adaptação, considero também magistral o roteiro criado por Robert Bolt para Lawrence of Arabia, o filme de David Lean vencedor de sete Oscars totalmente merecidos. Bolt trabalhou sobre Seven pillars of wisdom, livro autobiográfico de Thomas Edward Lawrence sobre a sua aventura nos desertos da Síria e do Hedjaz, durante o primeiro grande conflito mundial. Curiosamente, não há nesse super longa-metragem de 1962 nenhuma personagem feminina — contrariando a tese de que todo filme teria que apresentar um envolvimento amoroso entre os dois sexos para alcançar o sucesso que o filme de Lean logrou no lançamento mundial e, novamente, em 1972 e 1992 (em versão restaurada).

Essas duas produções são bem diferentes entre si, no tratamento e no orçamento, porém, ambas partiram de roteiros excelentes, situados nas antípodas daquela receita que adotamos nos anos de 1960 como lema e desculpa para muitos dos defeitos de origem do nosso cinema: “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”.

Idéias & câmeras
Essa fórmula mais ou menos esportiva foi, quem sabe, o escape da criação em tempos de cólera: a partir de 1964, a liberdade se tornaria um bem escasso no Brasil, durante cerca de 20 anos, e isso forçaria o florescimento das metáforas políticas, principalmente no cinema. A frase faria a cabeça, literalmente, dos diretores do Cinema Novo sob a influência da nouvelle vague — que, no entanto, nunca aboliu o roteiro de obras exaustivamente pensadas, como as de um Jacques Rivette, por exemplo.

Era a época da contracultura embasada nas idéias do hoje esquecido Herbert Marcuse, um pouco antes de surgir “a indústria que recupera tudo” (Glauber Rocha plagiando Gilles Deleuze). A liberdade ainda não era somente “uma calça Lee” e o cinema era parte daquela utopia vaga, comovente em corações e mentes jovens como “o sol somente o é uma vez” (Dylan Thomas).

Faz tempo, sim, e parece que herdamos mais o desleixo do que a desconstrutividade no gosto pelas falsas calças costumerizadas. No cinema do improviso engessado, ficou a idéia da câmera potencializada pelo logos não-platônico do lema transformado em algo como “comamos os bispos Sardinhas do real, de novo” — com base na estética da fome e da carnavalização do osso das coisas (esses dois pecados originais da raça). Nós, os tupiniquins de plantão sem idade, mais uma vez e sempre pecamos por nos mostrarmos encantados com os espelhinhos de bicicleta da realidade abaixo do Equador — longe da experiência cansada dos pecados de Tio Sam.

Na contramão disso — ou seja, na certeza cheyenne de não se encantar com efeitos de vidrinhos reproduzindo nuvens vermelhas de sangue (e outros truques) —, o cinema americano clássico sempre se manteve adepto da “espinha dorsal da escrita”, e cabe recordar um pouco como era gostoso o (roteirista) francês, alemão, inglês e até mexicano aqui e ali contratado na Idade de Ouro do nexo cinematográfico ianque. Eram batalhões de roteiristas, apetrechados de máquinas de escrever, garrafinhas de metal e cigarros estocados nos cubículos (do departamento que Nathanael West chamava de “morgue”), todos incumbidos de criar os roteiros ou revisar aqueles escritos por outros. Quem era bom nos diálogos melhorava o trabalho para as imagens ilusórias a 24 quadros por segundo e 200 ou 300 dólares por semana (mais o bônus por filme efetivamente produzido).

Nos estúdios da indústria hollywoodiana de fogo pleno, essa “usina de sonhos” a metros produzia pesadelos críticos como Infidelity — o roteiro escrito por F. S. Fitzgerald e censurado pelo código interno das grandes produtoras — e comédias leves, boas para as tardes de domingo, nas quais o beijo tinha de ser casto como o foxtrote dançado por irmão e irmã. O roteiro — pré-filme para os americanos — revelava a “boa” ou a “má” cabeça por trás da tela controlada por Hayes e os (chamados) bons costumes do meio-oeste à costa leste que desaba na obra-prima literária intitulada The great Gatsby.

Por que o maior escritor americano da segunda década do século 20 fracassou ao tentar escrever para o cinema? Porque era um grande, um imenso escritor, porém seus diálogos soavam literários demais nas boquinhas pintadas de atrizes platinadas como Harlow e Monroe.

Marilyn diz, entretanto, maravilhosamente, os diálogos de The misfits — escritos para ela pelo roteirista que se tornaria seu marido. Não se pode pensar na grosseria da “loura burra” ao ver a loura pura (?) dizer que “depende do próximo acontecimento” debaixo do céu vazio — que não nos protege. Desafortunado como ela, o filme ainda hoje passa despercebido nas madrugadas insones de obras-primas que ensinam roteiristas e cineastas a serem cinematográficos e não literários.

No cinema, o diálogo tem de sair diretamente da vida. Como os atores geralmente estão no ambiente real das locações, circulando no meio do tráfego ou tomando uma bebida num bar de segunda, diante das manchas no espelho, as “falas” não podem soar em cima do salto alto sobre o palco iluminado, debaixo da luz que artificializa tudo.

O real é mais real no cinema?
À frente das câmeras, a luz da manhã é tornada mais branca (isto é, mais “real”) com rebatedores e outras ênfases secretas — e Antonioni mandou pintar de verde a grama de Hyde Park para tornar o parque mais parecido com ele mesmo em Blow-up. Quem viu o filme do gênio italiano — a obra “pop” mais popular do cinema — sabe o quanto o parque londrino ficou mais concreto nessa fita baseada num conto (Las babas del diablo) de Julio Cortázar que jaz, irreconhecível, na história de um crime em que o que menos importa é saber quem-matou-quem atrás das moitas retocadas.

No cinema brasileiro, Alberto Cavalcanti foi um dos que se interessaram por criar uma escola de roteiristas que viesse a suprir a falta, histórica, de argumentos e histórias desenvolvidas assim para não se parecerem com a literatura ou, pior ainda, com o palco que pode ser uma ilha de palavras cercadas de escuridão iluminada por todos os lados.

Aqui, realizam-se obras cujos roteiros ainda não estão prontos, provavelmente, para virarem filmes (pode-se conferir um caso recentíssimo: o de Canta Maria, do experiente Francisco Ramalho Júnior). Cá em Pindorama, os atores e as atrizes que se saem bem nas novelas da TV freqüentemente se dão mal na tela grande (veja-se o caso de Tarcísio Meira, canastrão na tela grande e na pequena, mas ainda mais canastrão na primeira). Uma das possíveis explicações apontaria para o defeito fitzgeraldiano (nos roteiros, exclusivamente) do diálogo “a sobrar da boca” — sendo que as falas são, muitas vezes, ditas pelo Tony Ramos de plantão com aquela espécie de fração de partida, ou retardo fora de ritmo, dando a impressão de que só começaram a dizer as palavras quando a câmera foi acionada para rodar a cara película encerrada nos chassis de negativo.

Positivo: você estará certo se estiver pensando que somente agora estamos vendo surgirem escolas destinadas a formar roteiristas que não sejam literários (como Hermilo Borba Filho foi, para Cavalcanti, em O canto do mar) e possam criar, adaptar ou desenvolver os “libretos” específicos do cinema, que são os roteiros de ferro, de plástico, de papelão, de pano e de gaze transparente das idéias para o filme já digital, que agora está já instalado para sempre na tecnologia da arte das imagens.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho