Assim falou Wystan Hugh Auden (2)

O poeta que acreditava que, em literatura, a vulgaridade é preferível à nulidade
01/11/2007

Aqui estamos apresentando a parte dois desta seleção de pensamentos de W. H. Auden (1907-1973), poeta inglês situado entre os mais importantes e influentes do século 20, cujas observações são de extrema agudeza e pertinência, neste momento e neste Brasil (ou Pindorama) não apenas do segmento literário, que é um cantinho obscuro de rutilantes vaidades & solenes enganos, mas no vasto mar de tudo que acontece e nos espanta.

Bem, do começo de outubro para cá, tivemos o prazer de receber não pouca correspondência repercutindo justamente isso, e eu gostaria de destacar, entre todas as mensagens, a do poeta, ensaísta e doutor em literatura José Rodrigues de Paiva (autor do admirável As palavras e os dias, Vergílio Ferreira), que assim se manifestou:

“Li com bastante interesse a seleção de fragmentos de textos de Auden. Muito oportunos para a nossa época e para o cenário local das nossas ‘letras praieiro-surfísticas’. Alguns dos fragmentos são quase aforísticos. De alguns poderemos retirar o ‘quase’. Incisivos em ética e estética. Os seus comentários também. E a sua ironia fina. Tudo muito bom, inclusive o humor”.

Meu caro Paiva: sem humor, a vida se torna ainda mais insuportável do que os idiotas e os cretinos a fazem, para horror do nosso fígado. E o humor — principalmente o humor de Auden, finíssimo — vai prosseguir, aqui, com o acréscimo da também necessária admissão de erros, sempre que, com humor ou sem humor, nós os cometemos.

Eu incorri num engano, na primeira parte de Assim falou W. H. A. Esta última letra das iniciais do grande poeta foi o pivô do erro. Ou seja, fiz referência, mês passado, ao Flip e ao “Fliporto” — que é o Flip-cover aqui de Pernambuco, onde ou “falamos para o mundo” ou gostamos de copiar tudo que aparece no mesmo mundo. Seguindo a segunda das pulsões locais, a Flip carioca virou uma “Fliporto”, cá por estas bandas. Para piorar, em minhas mãos masculinas, ambas as duas (conforme o estilo festejado nas festas literárias de todos os sexos) foram referidas não como feiras literárias. Talvez por ter na cabeça, quem sabe, ainda a fumaça da palavra “festival” — do gênero masculino de Lampião, o Rei do Cangaço, etc. —, chamei tanto o original (a Flip) quanto à cópia (o Fliporto) como se tivessem as mãos de freiras pintadas de vermelho-vivo (até porque, na “Fliporto”, de Porto de Galinhas, o elemento femininíssimo foi inclusive reforçado pelo chamado brilho intelectual da convidada Bruna Surfistinha).

Traiu-me o subconsciente, pois-pois, e vi no “efe”, talvez, ao invés da correta feira de vaidades, etc., o “efe” de festival — essa palavra que Stanislaw Ponte Preta, de certo modo, embutiu nas nossas cabeças, ao tratar dos festivais-de-besteira-que-assolam-o-país. Assim, onde eu disse o Flip, o Flop e o Flup, leiam a Flip, a Flop e a Flup.

Mas já é hora de retomar a voz de Wystan Hugh Auden — infinitamente mais importante do que maxi e minimiudezas para ti, para mim, para nós, para galinhas e outros bichos.

Voltemos a ouvir o que falou W. H.:

Em literatura, a vulgaridade é preferível à nulidade, no sentido de que o pior vinho do Porto é preferível à água destilada.

Nota: São os nulos, os vazios, os sem-alma que viciam e estragam a literatura. Auden certamente defenderia Marcelo Mirisola — que não é exatamente “vulgar” (e que nunca irão eleger para a Academia Brasileira de Letras) — contra quem? Por exemplo, contra o honorável membro da ABL que atende pelo nome de Paulo Coelho, o qual não é vulgar (conforme muitos pensam), mas é simplesmente nulo, como escritor, em português ou em qualquer língua em que ainda reste por aparecer a sua “obra” de nulidade literária recebida — todas as tardes das quintas-feiras, a partir das quinze horas — no vetusto belo edifício da nossa Academia, no centro do Rio de Janeiro. Ali, Paul Rabbit pasta, no chá morno do Trianon, ao lado dos velhinhos e dos nem-tão-velhinhos que o elegeram — como também um dia elevaram à honra acadêmica o “caudilho” Getúlio Vargas, o general Aurélio de Lyra Tavares (vulgo “Adelita”), o senador e ex-vice-presidente Marco Maciel e outros também notáveis escritores brasileiros.

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Se eu tentasse escrever o nome de todos os poetas e novelistas cujas obras são merecedoras do meu mais grato afeto e admiração, por terem enriquecido minhas horas de leitura e (através delas) a minha vida, a lista ocuparia várias páginas. Mas quando tento pensar nos críticos com os quais estou realmente em dívida, anoto parcimoniosamente trinta e quatro nomes. Destes, doze são alemães e apenas dois franceses.
Uma das razões que fazem os bons críticos mais raros do que os bons novelistas ou poetas é a natureza do egoísmo humano. O poeta ou o novelista deve aprender a ser humilde diante de seu tema, que é a vida em geral. Mas o tema do crítico, aquele diante do qual deve aprender a ser humilde, compõe-se de autores, isto é, de indivíduos humanos, e este tipo de humildade é muito menos freqüente.
Há pessoas inteligentes demais para tornarem-se autores, mas que nunca chegam a serem críticos.

Nota: Também tenho uma lista enorme de obras de poetas e novelistas aos quais agradeço pelo mesmo enriquecimento mencionado por Auden (com a diferença de que enriquecer o grande espírito de W. H. Auden é uma honra bem diversa daquela de ter “enriquecido” a cachola de Fernando Monteiro). E este senhor não tem trinta e quatro nomes de críticos perante os quais se sinta em dívida, etc. Aliás, não tem nem vinte. Pensado bem, nem dez. Coçando o seu cocuruto já ralo de cabelos, ele constata que está em dívida nem sequer para com uma mão de cinco críticos brasileiros. Na verdade, só reconhece dívida intelectual para com um.
Nota suplementar, na primeira pessoa: E vocês querem saber o nome, não é? Sei como é a curiosidade humana. E ouço uma voz me dizendo: “Não diga, não. Você vai ver como os outros vão pegar no seu pé, para sempre, porque você citou um só nome. Tem cuidado, cara. Não escreve essas coisas. Você está no Brasil, meu chapa”, etc. Apesar da vozinha de vovozinha, etc., lá vai o nome do crítico: José Castello. E por falar em censuras e autocensuras, a próxima observação de Auden tem tudo a ver:

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Para manter os erros reduzidos ao mínimo, o Censor interior ao qual o poeta deve apresentar sua obra deveria ser, na realidade, um Censorato formado por: um filho único sensível, uma governanta, um lógico, um monge, um bufão irreverente e, talvez, odiado por todos, e — correspondendo a esse ódio — um órfico e estúpido sargento de manobras para quem toda poesia é um desperdício.

Nota: Aqui, o único momento no qual ouso fazer um pequeno reparo a Auden: “meu velho, sargentos órficos e estúpidos podem chegar ao generalato e até obter votos — derrotando Lêdo Ivo — na Academia de Paulo Coelho. Em Pindorama, foi o que aconteceu com Adelita”.

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Em literatura, como na vida, a afetação — assumida com paixão e honestamente conservada — é uma das formas de autodisciplina que serviram à humanidade para elevar-se, levantando-se por suas próprias orelhas.
Um estilo maneirista como o de Góngora ou de Henry James é como uma roupa excêntrica: poucos são os escritores que conseguem se sair honradamente da prova, mas a exceção nos fascina.

Nota: Não tenho nada a comentar. Acaba de estacionar na minha rua um carro suspeito, com um sujeito forte, com cara de sargento, acolitado por um baixinho, com cara de acadêmico. Sei lá! Por vias das dúvidas, cala-te boca!…

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Sem dúvida, a sinceridade — em seu correto significado de autenticidade — é, ou deveria ser, a principal preocupação de um escritor. Não há escritor que possa julgar a qualidade exata de uma obra, mas o que sempre pode fazer (senão de imediato, ao menos mais tarde) é ver se o que escreveu é realmente autêntico ou uma falsificação.
A experiência mais dolorosa que pode viver um poeta é descobrir que uma das suas falsificações teve êxito junto ao público e entrou em todas as antologias.

Nota: Continuo calado. (E o carro continua lá.)

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Muitos autores confundem a autenticidade que devem buscar sempre com a originalidade que nunca deveria preocupá-los. Há pessoas tão dominadas pela necessidade de serem estimadas por sua individualidade, que vivem em permanente demonstração dela aos que os cercam, afetando uma conduta insuportável. O que tal pessoa diz ou faz deve ser admirado não por ser intrinsecamente admirável, mas porque se trata de seu comentário ou obra sua. Não explica isto, grande parte da arte dita de vanguarda?

Nota: Explica, sim.

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Li uma frase de Karl Kraus que nunca mais saiu da minha cabeça: “Minha linguagem é a meretriz universal que tenho que converter em uma virgem”.
Ora, a virtude e a miséria da poesia residem no fato de que seu meio de expressão não é propriedade privada sua, e em que um poeta não pode inventar suas palavras, nem as palavras do poeta são produtos naturais, mas sociais, e utilizados para executar mil funções diferentes. Nas sociedades modernas, onde a linguagem se vê incessantemente corrompida e privada de seu significado, o poeta corre o risco de inutilizar o ouvido — perigo do qual a propriedade privada de seus meios de expressão isenta o músico e o pintor. Sem dúvida, o poeta está mais protegido do que eles de um outro perigo moderno: o da subjetividade solipsista; não importa quanto esotérico possa ser um poema, o fato de que suas palavras possam ser consultadas num dicionário, converte-o em testemunha da existência de outras pessoas. Inclusive Joyce, não criou ex nihilo a linguagem de Finnegans Wake; um mundo verbal puramente privado não é possível.

Nota: Pensem nisso hoje, amanhã e depois de amanhã. Na próxima semana e no próximo mês, pensem também. E levem 2008 pensando nisso, até chegar 2009 e não conseguir apagar esse pensamento de Auden no qual ficamos pensando durante tanto tempo.

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A definição de Robert Frost sobre poesia (“o elemento intraduzível da linguagem”) parece plausível à primeira vista, porém olhada atentamente, não funciona. Em primeiro lugar, até a poesia mais pessoal tem alguns elementos traduzíveis. Os sons das palavras, suas relações rítmicas e todos os significados e associações de significados que dependem do aspecto sonoro (como as rimas e os jogos de palavras), são, sem dúvida, intraduzíveis; mas o que diferencia a música da poesia, é que esta última não é som puro. Todos os elementos poéticos que não estão baseados na experiência verbal são, até certo ponto, traduzíveis para outra língua; penso nas imagens, nas analogias e metáforas que derivam da experiência sensorial. Além disto, uma característica de todos os homens, qualquer que seja sua cultura, é a sua individualidade; a visão de mundo que um autor possui sobrevive à tradução.

Nota: Eu gostaria de, por volta de 1956, ter vivido na Inglaterra, de preferência jovem ainda, com vinte e poucos anos; teria tentado uma vaga como aluno de Poética de W. H. Auden, e — milagre! — teria sido aceito, numa tarde de maio, em Oxford. Quem sabe, isso teria mudado a minha vida? Agora, é tarde.

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A poesia não é magia. A transcendência da poesia, como de qualquer outra arte, acha-se na sua capacidade em dizer a verdade, para desencantar e desintoxicar.

Nota: Poetas jovens!, ouçam isso, salvem-se — e salvem a poesia que vocês ainda podem escrever não apenas para ter chances de conquistar mesmo o maior dos prêmios (em dotação monetária). Escrevam para dilatar as consciências, e não para ajudar a adormecê-las sobre travesseiros de penas de ganso.

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A expressão “os anônimos legisladores do mundo” serve para descrever a polícia secreta, não os poetas.

Nota: Por sinal, o carro suspeito — como o sargentão e o academicão disfarçados — já foi embora. Parece que ficaram com medo, não de mim, mas das verdades de Auden, que finaliza com o melhor de tudo:

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Só um talento menor pode ser um perfeito cavalheiro. Um talento maior sempre é um pouco mais que malcriado. Daí, a importância dos escritores menores: são mestres de bons modos.

Nota: Sem comentário. Fim.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho