Assim falou Lêdo (e Ivo) Engano

Lêdo Ivo defende que o último grande momento do romance no Brasil ocorreu nos anos 30
Lêdo Ivo, autor de “O canário azul”
01/12/2007

O poeta alagoano Lêdo Ivo fez uma aparição, nas últimas horas da “Flip” de Porto de Galinhas (PE), como convidado que, nas palavras de Schneider Carpeggiani (editor de literatura do Jornal do Commercio, de Recife), logo ao chegar à aprazível praia do litoral sul pernambucano, dedicava-se, em vão, “a procurar o seu nome na lista dos palestrantes”.

Lêdo (ele faz questão do circunflexo, como se a vida genuflexa dependesse do sinal gráfico ajoelhado sobre o “e” do nome curto como um café pequeno) acentuou, para o atento Carpeggiani — conforme se pode ler na reportagem Lêdo Ivo se preocupa com a prosa (Jornal do Commercio, 30/09/07, Caderno C, página 8): “Acho que esqueceram de mim, devem ter me chamado aqui apenas para aplaudir” — e soltou aquela gargalhada de Ivo, de Divo, de Dúvido.

“Dúvido”? Bem, trata-se de homenagem antecipada a Guimarães Rosa, que surgirá mais adiante, entrando aqui menos como Pilatos no Credo do que se imagina, à primeira vista. À prima vista, pois, o alagoano, não se achando na lista fliportiana inflacionada, raciocinou como Macaulay Culkin: “Esqueceram de mim”.

Esqueceram nada. Ninguém iria esquecer do Ivo; apenas não tinham, certamente, nada para ele fazer (mas terminaram arranjando, sob o efeito da sua ironia), na Fliporto mais preocupada com “aulas” e “espetáculos” respectivamente de Ariano Suassuna e da Bruna Surfistinha (isso mesmo: B-r-u-n-a S-u-r-f-i-s-t-i-n-h-a, você não leu errado, estava lá — e como estava! — no mínimo ofuscando Nélida Piñon, muito naturalmente, etc.).

UMA PRIMEIRA DIGRESSÃO
Se me perguntassem quem eu prefiro, a saber: o Lêdô (resolvi tascar mais um circunflexo, para aumentar o prazer do poeta diante de acentos & assentos nas academias), o narigudo Ariano ou a travessa Bruninha, devo confessar que, sem a menor sombra de dúvida, seria para a garota paulista todos os meus olhares, a minha atenção e, é claro, a minha preferência não propriamente intelectual nem estritamente literária, neste específico caso. Coloquem uma foto do vovô Lêdô Ivô ou da pedregosa face do autor de A pedra do reino perto de um açucareiro, que não irão testemunhar nada menos que uma aula não-espetacular, no melhor estilo Discovery Channel: ou seja, todas as formigas e moscas fugindo, assustadas, de perto das imagens dos dois imortais. Fiz a experiência, é lógico. Assim como, com todo rigor científico, peguei uma foto da doce e jovem “escritora”, botei contra o frasco de adoçante dietético recentemente prescrito para mim, e as moscas e as formigas afluíram como muitos escritores, com e sem aspas, costumam afluir para qualquer Flip, Flop ou Flup da vida. Fim da digressão.

Voltando a LI, o poeta de Alagoas foi, então, um dos últimos a dar o chamado ar da graça — um tanto gasta — e desembarcou em Porto de Galinhas preocupadíssimo “com a prosa”, conforme a manchete da reportagem no já citado JC.

Jesus Cristo! Ledo falou e disse (agora sumiu o circunflexo, porque o programa do computador deleta os chapeuzinhos automaticamente; então, vai ficar assim mesmo, a partir de agora), uma vez que os últimos sempre se esforçam por se tornarem os primeiros, no último dia, nas manchetes locais. Saindo, perigosamente, do terreno da poesia, Ivo viu a uva da prosa ao seu alcance, e oh, arrasou, soltou o(s) verbo(s) que a Surfistinha nem sabe conjugar direito (se é que precisa). Ledo dixit:

“Eu acho que o nosso romance se perdeu, sofreu um grande desvio e não sabe mais para onde vai. A linguagem está pobre, etc.”.

Há que se ouvir um membro da centenária Academia Brasileira de Letras com o máximo de respeito, e o jornalista Schneider Carpeggiani assim o fez. Isto é, anotou bem anotada a plena “atualização” do poeta com a nossa prosa mais uptodate (com o perdão de Suassuna), senão vejamos:

“O último grande momento do romance do Brasil foi durante o Romance de 30, de onde saíram nomes como José Américo de Almeida, José Lins do Rego, autores que faziam um painel amplo do País”.

Em bom e claro português, isso foi dito assim mesmo, ficou impresso, e passou a fazer parte da mais recente história literária de Pindorama: para o acadêmico Ledo (e Ivo) Engano não tivemos mais prosa boa (como a Bruna de biquíni) e digna do “grande momento” (1930) nos últimos setenta anos.

Para início de conversa, o autor de Sinal semafórico avança o vermelho e mete o pé, atropelando um amigo seu — e companheiro de geração —, que foi um excelente romancista: o mineiro Lúcio Cardoso. Ledo (e Incrível) Engano até morou com Cardoso, quando este o acolheu em apartamento do Rio de Janeiro — logo que o poeta emigrou do Recife para as plagas cariocas, em busca de emprego, amizade com Carlos Lacerda e reconhecimento. Apesar disso, o autor da obra-prima Crônica da casa assassinada sumiu da memória enganada do emigrado. Pior ainda: as obras de outro grande romancista — João Guimarães Rosa, acadêmico da mesma academia onde Ledo toma chá e come empada e bolo de aipim, todas as quintas-feiras, no centro do Rio — se eclipsaram, aqui, da cabeça ivesca, com destaque especial para a obra-prima Grande sertão: veredas, romance rosiano sumido, desaparecido, defenestrado da frente do olhar do acadêmico retardatário (candidatou-se sete vezes). Ledo é um trator — na sétima marcha, engatou —, um acadêmico-é-brasa-mora, e seguiu em frente nas declarações de índio com tacape giratório:

“Os escritores de hoje só sabem criar personagens que bebem vinho e transam. Quando eles não estão fazendo isso (bebendo vinho e transando, entenda-se), os personagens só pensam em seus dramas pequenos, não há uma visão da sociedade como um todo” — explicou o autor de Ninho de cobras (um romance cheio de muitos personagens, e mais um anão e uma raposa no meio de um ninho de répteis humanos — e nenhum foco cuja força prenda o leitor diante do “painel” da sociedade de Maceió “como um todo”, durante os anos da Segunda Grande Guerra). “Como um todo”?

DIGRESSÃO DOIS
Pensei que ninguém mais estava usando a frase, como um todo.

Passo, agora, a citar, mais completamente o texto jornalístico, incluindo as palavras de Carpeggiani: “A falta de interesse do alagoano pela atual literatura brasileira é completa. Lêdo Ivo não consegue lembrar de um só novo autor que tenha despertado sua atenção nos últimos tempos: ‘Sinceramente, não lembro de um só livro. Eu acho engraçado que, nos romances de hoje (afinal, ele os lê ou não? — o grifo é de FM), os personagens são sempre ociosos, você nunca sabe em que eles trabalham ou se trabalham. Essa nova geração (enfim, ele a conhece ou não? — o grifo é de FM) só se preocupa com seus próprios problemas”.

Li e reli. Não pude acreditar que uma pessoa que já passou dos oitenta anos se expusesse assim, com tal tagarelice solta e pretensamente “engraçada” (talvez na intenção, gorada, de ir pelo velho caminho suassunesco das piadas).

DIGRESSÃO DIRETA TRÊS:
LÊDO IVO, dois pontos (e com ou sem circunflexo, acento agudo, grave, gravíssimo naquilo que você se permitiu falar pelos cotovelos): Depois de Lúcio Cardoso e Guimarães Rosa, apareceram romancistas e prosadores brasileiros bons e até ótimos, cujos livros ninguém — mesmo com a sua idade — pode alegar, publicamente, desconhecer. Pelo menos ninguém que pertença à Academia dos Chapéus de Plumas e Espadas Douradas da Literatura. Posso citar o seu colega da ABL, João Ubaldo Ribeiro, para começar, e mais Raduan Nassar, Caio Fernando Abreu, João Antonio, Dalton Trevisan, J. J. Veiga, Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna e Milton Hatoum, para ficar só em alguns nomes, digamos, “incontroversos”.

E Ledo os conhece bem esses e outros escritores que surgiram muito depois da chamada “escola regionalista”, com obras ficcionais cheias de força e originalidade. É difícil acreditar que o curioso, o saltitante poeta, no pleno gozo da sua aposentadoria não só da Associação Comercial carioca (e, portanto, com tempo suficiente para se dedicar à leitura de velhos e novos), não conseguisse se “lembrar” de uma única obra digna de menção, posterior ao regionalismo de José Lins e José Américo…

Respeito a idade de Ledo, aprecio uma parte da sua obra (irregular e cheia de altos e baixos), e não estou pretendendo iniciar polêmica alguma com ninguém. Estou apenas chocado com a lente invertida do binóculo do acadêmico, encontrando somente moscas sem identidade em torno do velho açucareiro do romance regionalista tão admirável quanto ultrapassado por autores das gerações pós-“Coiteiros”.

Na Espanha, o dedo-duro Camilo Cela alegava, também, desconhecer o que haviam feito — ou ainda estavam fazendo — os mais jovens, depois de Cervantes e dele mesmo; o Cela que escreveu grandes romances, mas também dedurou nomes para as masmorras franquistas (o que recentemente foi comprovado com documento irrefutáveis). Gênio, porém alcagüete, Camilo José reclamava também do “fim do mundo” na literatura espanhola, do mesmo modo como Ivo resolveu reclamar do finisterra da prosa tupiniquim.

De ambos, os dedos em cruz juraram desconhecer quem veio depois. Pura contradição, no caso do Dedo daqui:  ora manteundo d fim do mundo da literatura tupiniquim s ta seriamente.ou mal ele sustentava que não estava lendo ninguém surgido depois dos anos 30 (incluindo ele mesmo, Ivo), ou reconhecia estar lendo os mais novos (e já nem tão “novos” assim), ao reclamar de “linguagem pobre” e outros defeitos do que, supostamente, não estaria lendo, o Ledo, por falta de interesse, de óculos ou do que for.

Não sei se me farei entender na última das digressões a respeito desse assunto “praiano” demais para o meu gosto. Digamos que os organizadores da Fliporto arrastaram Ledo Ivo muito longe do seu secular endereço em Botafogo, até chegar à beira-mar das Galinhas disfarçadas de gaivotas de Paraty. É uma viagem muito cansativa para quem tem mais de oitenta anos. Tornando mais claro: você é você, Ledo Ivo, e, a esta altura, já irremediavelmente — passado o Cabo da Boa Esperança, quando a vida e os livros não podem mais ser diferentes do que foram para Celas e Ivos presos nas malhas da própria biografia (“tudo é biografia” — para lembrar o quase axioma de Jorge de Lima, conterrâneo de Ledo e poeta com direito pleno à verdadeira imortalidade: a que passa do fardão do pavão dourado).

Digamos que a lógica foi mais ou menos: na falta de um Jorge já falecido, que venha um Ivo ainda vivo. Com um circunflexo, com dois, com três, com seis, não importa. Chamaram-no, e você se largou — para fazer rolar a roda quadrada da marcha midiática do evento à beira das belas piscinas naturais (VISITEM PORTO DE GALINHAS, COM OU SEM FLIPS!), que ninguém é de ferro.

Estamos em fase áurea de festas literárias, farras metalingüísticas, aulas-espetáculos e outros shows de superespetacularização das letras (primeiras e últimas), supostamente com o intuito de ocupar espaço nos jornais e na TV, por meio de convites aos “grandes nomes”, aos “medalhões” e às “medalhinhas” no umbigo das Brunas Surfistinhas.

Dá no mesmo (para os novos promotores de Cultura Lustra-móvel) juntar alhos & bugalhos, conchinhas do mar & cacos do século dezenove, nos sobrevôos de asa delta que atropelam qualidades e confundem os valores, nesta Época da Brutalidade triunfante como um touro numa loja de porcelana.

Na Era da Falsificação e da Vulgaridade, juntam-se todos no mesmo saco banal de gatos e gatas (se é que a Nélida Piñon — que estava mal na foto, ao lado da Bruníssima — pode ser considerada uma gatinha, em noite sem caco de lua, no porto obscuro onde a literatura foi atracada, mais uma vez, para atender ao novo desígnio terminal dos seus dias, para mim, parati e para todos: INCENTIVAR O TURISMO).

NOTA: este texto recebeu uma nota preta da Embratur (um milhão de dólares falsos) e da Academia Brasileira de Letras de Sambas de Crioulos Doidos (duas empadas e três primeiras edições de O alquimista, autografadas pelo autor, no valor aproximado de quatro mil euros cada. Espera-se que os eventuais europeus interessados nos autógrafos de Paulo Coelho paguem com euros autênticos).

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho