As asas da noite que surgem (1)

G. vai para Berlim e garante que escreverá para dar notícias
Ilustração: Francisco Brennad
01/02/2012

Da noite longa e já animada desde o fim do expediente nos dias do verão levando a tarde até o limite do ar noturno: um frisson na sombra, um acender de luzes nas latadas, sob letreiros (alguns) ainda escritos à mão, longe do estardalhaço padronizado dos McDonalds freqüentados pelos jovens — estranhos como marcianos, na verdade.

Pelo menos para mim, que caminhava por ruas onde havia o Lumidis, o café dos literatos; o Zakaratu, vizinho do Parlamento; o Hellenizon dos gerânios dos tempos de Kazantzákis; o Kolonaki das trepadeiras enrolando-se nas colunas fingindo de “cretenses” de um jeito menos desajeitado do que aquelas de Evans, no palácio de Knossos restaurado com o mau gosto fin-de-siècle de um diletante endinheirado.

E não, eu não ouvia a vulgaridade cinematográfica do sirtaki de Zorba como uma decalcomania grosseira colada nos meus ouvidos, mas a soprano Bidu Sayão cantando a “Melodia sentimental” — tão pungente — com uma tristeza lacustre de fim de tarde brasileira que casava com o meu desespero. Compreendam: eu não estava na mata amazônica, mas na Atenas moderna, esperando pelos sinais fechados na praça Sintagma iluminada para o caminho da praça até o fervilhar de turismo nos becos de Plaka (mais do que no velho Pireu quase deixado em paz, agora, pelos idiotas “sentindo-se na Grécia” dos pratos quebrados para eles, os turistas), de maneira que aquilo — ouvir imaginariamente a longínqua Bidu, os versos sobre “a noite escura”, “a lua que fulge tão bela e branca” — era mais do que absurdo e nada tinha a ver com…

Bem, voltemos ao quarto, quando a porta se fechou e G. foi delicada, não bateu, teve o cuidado de não ser brusca, a lingüeta se encaixando na ranhura à medida que o trinco era solto (o que evita o som martelado de uma porta “que bate”) — e eu já sabia que não iria receber carta nenhuma. Era só uma metáfora para adeus, um selo de despedida: “Eu lhe escrevo de Berlim”. Ah, sim.

Não quero falar sobre isso, realmente. Quero caminhar em desacordo com o cenário em ainda maior desacordo com a canção “sentimental” que soa em minha cabeça, agônica quando quer ser feliz sob uma lua latina do tamanho da máscara de ouro “talvez” de Agamenon.

Jornalistas, escritores e artistas também freqüentavam a Lycovrisi — a “Colombo” de Atenas —, não a maior nem a melhor pastelaria da cidade de paladar tão aguçado para doces e discussões amenas, mas o lugar escolhido para argumentos elegantes, lançados como as coberturas daquelas coisas maravilhosas que se chamavam Nikké, talvez porque lembrassem alguma alva fatia de perna de moça lavada pela luz da lua sobre os mármores soterrados aos pés de um espelho (o Egeu de certas praias onde moças antigas se banhavam como brancas aparições arcaicas).

Agora, não havia mais a lua de reflexos, nem existia mais essa Grécia dos banhos noturnos, não havia mais G., nem mais nada para mim — só a voz de Bidu cantando na minha mente tentando urgentemente se ocupar de outros assuntos…

“São de se recordar também aqueles pequenos cafés da Omonia, igualmente desaparecidos.” E os outros — meio ouzeries, meio cantinas — onde se podia beber tanto a bebida como café ao gosto turco, ouvindo a confusa história sobre a herança de algum comerciante que havia morrido e deixado viúva ainda jovem.

Você ouviu alguma dessas histórias? O mais curioso é que as viúvas de fato arranjavam, mais tarde, um marido ou um amante que arruinavam o seu patrimônio — como no caso, dos mais notórios, de um importador de bebidas que tinha vindo de Thera, ainda menino, sem um dracma no bolso. Era, pelo menos, o que se dizia sobre ele: que havia trabalhado, anos e anos, para um turco de Chipre, dia e noite, sem descanso, até tornar-se sócio do sujeito no negócio onde tomara para si a tarefa de vender o vinho espesso da sua ilha sempre objeto de disputas. O que o levara a conseguir exclusividade no comércio do “tinto” um pouco áspero (embora o cipriota não apreciasse vinhos de Santorini ou de outra origem grega qualquer, porém soubesse vendê-los como ninguém).

São águas passadas. Os poetas estão mortos. Os cafés foram substituídos por drugstores, e eu não sou guia turístico de um mundo tão recentemente enterrado. Falo de um passado tão novo que…

Levantei-me para vê-la chegando à calçada — após o tempo de descer quatro lances de escada (o elevador não estava funcionando, mais uma vez).

Eu via a sua cabeça, os óculos sobre a testa, o elástico que amarrava o cabelo num rabo de cavalo juvenil, embora ela não fosse tão jovem. O penteado combinava com as sardas delicadamente pintalgadas (um pouco na face e nos ombros), sendo que sabia tornar engraçada aquela história de que estava sempre se quebrando — desde muito nova — numa perna, num braço, no pulso fino, na mão desenhada por mim (somente a mão) pousada sobre o púbis sem sombra de pêlo, conforme se revelara no hotel da Jordânia.

Jordânia? Você não estava na Grécia?

Estava. Estou. Estive, quando era Atenas, ainda, a cidade de “ar balcânico” que Sandro Kostas recordava. E que via perdida: “Atenas deu adeus à sua face levantina”. (Como discordar dele?)

A cidade de hoje tem o rosto desgastado de uma cidade qualquer do seu lado da Europa consumista, cheia de coisas novas e sem personalidade, no lugar das “velhas coisas gentis” que se acabaram. Faz diferença só a Acrópole, iluminada à noite, empoeirada como uma gaiola de colunas que cedem um tantinho mais, a cada ano. O monumento toma injeções de concreto nas veias de pedra, todos os dias, como um doente terminal da arquitetura. Um dia, talvez vá desaparecer como os modos de alguns garçons dos cafés perdidos que Kostas ainda gosta de rememorar (alguns sumiam da vista dos clientes pobres, para evitar intimidá-los com as toalhas usadas para limpar o nada daquelas mesas que ainda não houvessem feito nenhuma despesa).

Alguns letreiros e marquises impediam que eu visse a evolução completa do seu caminhar (que eu quase perdera, e no momento gracioso de pôr os óculos escuros) sob o sol tão minucioso, sendo que o passo do seu tênis não era rápido nem preguiçoso, na claridade que retalhava as silhuetas nas pedras, no asfalto quase branco — que agora lembrava o maiô de cal sobre a carne pálida. Ela havia explicado: “Estou gorda demais para o biquíni na bolsa” (o que não era verdade). Lembrei disso, e não me lembrei de ter dito que não era verdade, não é engraçado?

E então a desejei com um desespero tão fundo que doeu no corpo debruçado sobre uma janela aberta de Atenas, “o melhor lugar para despedidas” (não é mais!) dizia a canção não traduzida para os turistas (os gregos os desprezam e os bajulam, em igual medida)…

Em sua tristeza, para Sandro é importante que quem o escute possa entender isso: um dia, houve uma Atenas realmente branca, de casario baixo “a um passo do mar aonde todos iam se banhar”…

Levantava-se a vista, e as altas colinas ecoavam os nomes longínquos, decorados para as provas dos liceus romanos (Sandro é da Emília dos castelli de além Appia), com os bustos de atenienses antigos, os olhos vazados nos corredores que as férias lustravam de quietude.

I resti del’antica Grecia avrebbero avuto quello stupendo risalto se tutt’attorno ci fosse stata una citta con le massicce, pretenziose architetture europee dell’Ottocento e primo Novecento?

E o Partenon — prodígio que sucumbe — invadia o quarto dos hotéis mais altos, pela janela aberta para a noite pressagiada pelo cinza do crepúsculo espetacular entre as colunas, onde ainda podia acontecer de se estar sozinho, na parte mais vazia do templo, antes do turismo de massa. Quem sabe, um milagre talvez pudesse se dar (como só se dão os milagres com os quais já não se conta), nos jardins de acesso ao velho emblema corrompido da cidade, onde fizesse se ouvir algum pássaro mitológico entre as flores extenuadas?

“Desde a colina ao pé do templo até o jarro de alabastro que jaz agora neste quarto, testemunha dos verões gregos e das pérolas na fronte pura, porejada de nervosismo, da ninfa no seu encontro primeiro”…

Ninfa? Há aqui algum engano — ou qualquer tom elegíaco que soa desmesurado para o vulgar amor num quarto de hotel barato, a moto que alugamos lá embaixo, estacionada, e a “ninfa” se examinando ao espelho colocado como penteador acima da mesa com o vaso de alabastro da cor do corpo desnudo, depilado e mal protegido pela gaze da cortina leve de luzes da rua apagada da memória.

Que nome tinha o hotel onde a irmã de Byron, diziam, havia se hospedado nos “seus dias de glória”? (Aquele nosso hotel nunca os tivera, certamente.)

“Ela via o Partenon…” — canta Elytis, num poema inédito, e que deslizou para debaixo da cama da literatura (G. sabia dessas coisas da maneira mais misteriosa, não perguntem como nem por quê; o importante é que fixem a janela que dá para a Acrópole, o monumento como sempre suspenso, “maciço e etéreo”, por sobre a ruína da realidade.)

Na falta de outro assunto, o poema trata do casal mais tarde separado, ela diante da mesma visão — “o grande templo quase ao nível dos olhos” —, em face daquelas janelas que dão para a “eternidade do peristilo” (todos os guias de turismo são enfáticos, em Atenas como em Botucatu). O sol o queimou o dia inteiro, tornando clara a ligeira inclinação progressiva cujo cálculo é a suprema sutileza do monumento levantado quando, já no século V, se retardava o declínio da “sagrada colina à beira do abismo”:

La grazia di Atene…

Quando a vi partir (e era verdade que ela estava indo embora), compreendi que estava sozinho de um modo novo — diante da onipresença, quase, de uma ruína que já havia desaparecido de si mesma. Isso parece idiota, mas é como G. havia anotado no meu caderno cheio de desenhos amadorísticos, alguns jeitosos (o da mão), outros simplesmente canhestros (o das falsas fachadas): “a Acrópole é uma miragem que não merecemos e que deixamos de compreender”.

Depois, eu iria encontrar a frase, sublinhada, no livro do professor grego, que ela não “tivera tempo de devolver” — e eu, por meu lado, não quisera remeter para o seu endereço de Berlim, pelo correio, assim me separando daquela letra gordinha que assinalara partes do texto bilíngüe e desenhara até mesmo um engraçado chinês zarolho na última página de guarda.

Por que estou condenado a seguir lembrando essas coisas, com uma atenção tão concentrada? Há uma doença qualquer nisso, um dente cariado que se acarinha com a língua voluptuosa, um modo de misturar, perversamente, a realidade presente e a realidade lembrada: duas cargas diferentes, dois pesos demasiados. E Bidú Sayão soprando na minha mente os versos de Dora Vasconcelos que — ninguém se lembra — escreveu o libreto para Villa-Lobos: “Acorda, vem ver a lua/ que dorme na noite escura,/ que fulge tão bela e branca/ derramando doçura./Clara chama silente/ ardendo o meu sonhar./As asas da noite que surgem/ e correm no espaço profundo./ Ó doce amada, desperta!/ Vem dar teu calor ao luar”…
G. foi embora. Está um vazio na Atenas inteira, na Patagônia e na minha mão: lembro dos seus dedos entrelaçados nos meus, por estas mesmas ruas. Lembro dos seus lenços, dos seus tênis debaixo da cama, virados. “Dá azar” (qualquer sapato virado), e eu desvirava — resignado com a superstição que lhe arrancava apenas um sorriso.

Recordo outros detalhes: um pijama que ela usou, infantil como as roupas compradas na Disney, e que poderia me irritar se não lhe houvesse dado o ar folgazão de uma adolescente que fazia a sua primeira viagem ao exterior, na companhia de colegas rindo no quarto de hotéis suspeitos onde há sempre vagas, mesmo no pico da temporada. O modo como as adolescentes riem (e nunca mais rirão). Seus pés rosados, que o mar lavou (o mar piedosamente interessado?)…

E por que dói a recordação? Todas as pequenas recordações sem lugar na futura conversação (sendo, então, obrigatório silenciar sobre esses nadas, essas sobras boiando sobre a água do banho que foi para alguma dobra úmida da minúscula eternidade de luz esgazeada — porque você olha bem de frente para o sol entre as colunas).

Atenas, a graça de Atenas, não estava li, mas no conserto da sua sandália — se é que me entendem. Uma pessoa pode enlouquecer porque os outros não compreendem o quanto ela concentra, numa miniatura lateral, o todo da graça imortal de um monumento arruinado. A moça se debruça sobre uma torneira do antigo hipódromo (onde agora Santa Sophia se ergue, entre jardins mal cuidados), e isto é Istambul num frasco de água-mineral de novo cheio, até a borda, de água das fontes de ablução ou das cisternas afundadas, de maneira que a mão, a sua branca mão — branca como a lua — colhe a água potável enquanto eu também fazia o mesmo, pela primeira vez, e pensava nas mulheres bizantinas que haviam morrido, “aquelas damas romanas com seus espelhos de cobre e ungüentos de beleza, à luz vacilante da barbárie” — literatura! —, quando tudo que havia realmente para ver era a revoada dos pombos, no ar resfriado pelo Bósforo descoberto de nuvens, tudo cortado à faca, e mais: facilitando o recorte dos palácios gradeados do cais de gaivotas suspensas enquanto os bares se acendiam como pirilampos, na margem asiática, e havia ainda a promessa de quietude final no apartamento do hotel da ruazinha de jasmins agora dolorosos, perto da velha Gálata…

Gálata? Meu deus, a Turquia no lugar da Grécia, depois das primeiras brigas por qualquer coisa. As imagens, por um momento, se trocando como quando alguém chega e se deita, exausto, na cama arrumada pela camareira que nunca é vista. Ficamos na cidade poucos dias — mas agora eu parto no encalço delas, como quem refaz um retrato embaciado pela fuligem da memória. As recordações são confusas.

CONCLUI NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho