Arquetigramas

Um poema de todos os ontens imersos nos possíveis futuros
01/08/2010

Poeta nascido em Teixeira (PB), há 56 anos, Alberto Lacet merece reconhecimento bem mais amplo do que obteve, até agora, através da publicação de poemas — de dicção própria e inconfundível — em revistas e jornais restritos ao Nordeste, no mais das vezes.

Lacet é pintor (e não menos que um dos três melhores, reconhecidamente, da Paraíba que ele nunca quis abandonar para tornar mais fácil o alcance da crítica e do mercado nacionais) e, com os pincéis, já atravessou nossas fronteiras, com seu mundo pictórico também absolutamente particular, de atmosfera algo antonioniana em quadros de solidão e estranheza cujo aparente “realismo” se distorce com mais sutileza (e surpresa) do que, por exemplo, a imaginação mecânica do igualmente paraibano João Câmara.

Portanto, com a pintura de AL eu diria que está tudo bem, em termos dos que lhe reconhecem, ainda bem, maestria e imaginação invejáveis etc. É com a sua poesia que as coisas de certo modo estão indo ainda devagar, neste país continental que o Rascunho, aos poucos, está logrando alcançar, enquanto faz justiça a muitos poetas e prosadores ainda à espera da justa ressonância dos seus trabalhos. Na edição passada, vi o belo livro de Almir Castro Barros, Um beijo para os crocodilos, ser resenhado por Igor Fagundes e, nesta edição, eu abro a página para um poema inédito de alta densidade imagética que o Alberto Lacet me enviou, com a esperança de vê-lo estampado numa revista eletrônica à qual tenho acesso. E o que eu lhe respondi, foi: “Esse poema eu não vou enviar para ………., não, seu Lacet. E pelo simples motivo de que é bom demais para sair num veículo internetiano no qual as notícias, os textos vão se amontoando, todo santo dia, e levando um poema desse nível para ‘trás’ das páginas roladas inapelavelmente. Vou, sim, publicar o Arquetigramas em papel — antigo e indispensável papel! —, já na próxima edição de agosto, na nossa página do jornal de Rogério Pereira”…

Dito e feito. Os leitores deste jornal têm, então, o privilégio de conhecer um dos nossos mais fortes poetas ainda à espera de boas edições nacionalmente distribuídas e tudo o mais, a fim de que possamos tomar conhecimento do quanto a poesia brasileira, neste momento, apresenta-se vigorosa — enquanto a prosa tem, no mínimo, digamos que muitos, muitíssimos problemas na hora presente.

ARQUETIGRAMAS

I
Antigamente a noite ardia em círios
Desfalecia em flores apodrecidas
As virgens carregavam seus segredos
Para a cova

Em antiguidade mais recente
O ódio, entre pesados tributos
Passou a exigir também um incêndio
Assim, no instante final da purga
Na tarde borrada de insultos
Um herege recebe as terríveis
Explicações do fogo

Em antiguidade mais antiga
Em tempos sem leis de tempo
(Quando insuspeitos são os poemas)
Qualquer horizonte é prenúncio
Da horda, ninguém
Homem ou deus
Opõe-se a um pântano
Não é conhecida a morada do deus
Cuja boca sopra ventos e rios
Nem mesmo um poema
Pára em sua forma
Grafado na pedra
Não há ainda legiões
As regulares, os reis obesos
As poderosas cidades, não há
Com seus deuses imóveis
Seus degredos
Seu torvelinho crescente
Com as diferentes, cada vez mais
Diferentes crianças
Com a fetidez de origem
Seus locais para oxigênio
Caro, ou barato
Com abismos particulares
Erguidos à volta de torres
Cimáculos, arcos celebrativos
As gárgulas sobre a gentinha
Essas coisas, não há

Há muitas outras coisas
E pouco delas se sabe
(Sabe-se que um rio
vem mergulhando nas palavras
Juntos vão dar alegremente
Em mar de confusão e dúvida
Sabe-se mais: alguns
Medem-se com o deserto
Touros choram
Virgens mortas)

II
Uma raça de demônios
Já então antigos
Já então inexatos
Andou pelos mares:
Ao seu chamado
Serpentes emergiram do abismo
Potestades não lhes negaram
Estrondo e fogo
Com incessante látego
Ventos fustigam
Ilhas e costas
Que se enchem de clamor
Às devastações, segue
Violação, rapina
Divindades menores, de granizo
Pactuam com fúrias
E as coisas não melhoram

Mas sempre que alguma discórdia
Surge entre tais demônios
Acontece de uma paz momentânea
Descer como luto
(Crianças cegas então
Vasculham silenciosos porões
procurando suas mães acorrentadas)

Um delírio antigo dos homens
Voltara-se para as montanhas
Os príncipes apenas para as estrelas
Escorria vinho de leões de pedra

Anjos descansarão as asas
Em ilhas batidas de lepra
Piedosos missionários irão considerar
A razão dos enfermos
O valor dos indultos
contagiados
voltarão para morrer na sombra

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho