Quando o homem havia saído? Voltei-me para ver uma mesa vazia, Petra ainda sorrindo (“você não comeu nada”), a noite estragada como meu gosto para qualquer outra coisa, nesta viagem (nas outras, também).
Não, ela não era a mesma estrangeira falando português com sotaque — onde estava aquele modo de dizer os “rrr”? —, que banho extraordinário havia tomado que o lavara pelo ralo? Sentia seu cheiro, mas não a sentia mais a mesma que estivera comigo — dentro e fora das tempos — o tempo suficiente (“escavado naquela porra de rocha”) para guardar detalhes da visita guiada, da comida no prato, da pergunta delicada: “O carneiro está ruim?”
Petra me explica: “Ele está perguntando a você”.
Referia-se ao garçom, que viera levar nossos pratos (Petra falava árabe também?: “Você fala todas as líng…?)”, plantado com uma censura simpática debaixo do bigode que poderia ser falso. Elogiei tudo: a comida, a música, o bigode autêntico e o sorriso falso.
Depois de apresentada a conta — cifra que a fez entender o quanto me fizera esperar (estavam anotadas todas as bebidas consumidas em mais de uma hora admirando justamente o cardápio em árabe e inglês) —, expliquei (precisava de explicação?):
“Não havia mais nada com que me distrair”…
Tive a noção de mim mesmo ali, duas horas antes, como numa cena banal de anúncios de viagens internacionais falsamente emocionantes: bebendo, esperando com um copo mão, entre mesas semi-iluminadas (tudo achatado por imagens superpostas, de filmes e novelas baratas, rótulos de bebida e sucessos populares do gênero Canção Romântica). Comecei a recitar, mentalmente, o início pouco sutil de um conto: “homem vestido com displicência esperando a mulher que vem metida num vestido decotado, duas horas para escolher, num quarto ‘levemente’ perfumado”. [É como se encontram todos os quartos de hotéis da quarta dimensão das narrativas sobre marquesas que se perfumam, pela quinta vez, antes de tomar o sexto ônibus da fila de transportes turísticos das ilhas virgens de marquesas perfumadas até agora]. Quando Petra, a marquesa disfarçada, termina de se vestir, borrifa ainda a essência de jasmins fanados na nuca e no antebraço onde trocou o relógio sobre a marca do cronômetro masculino das horas do dia — e a marca sobra do relógio de noite (que ela precisa acertar, e não acerta porque está apressada), cujo mostrador é mais um adorno de traços de platina do que uma informação horária defasada em termos de fusos horários Berlim-Jordânia.
O que se veste para jantar na Estalagem de Petra? Na imaginação da própria, um vestido verde esmeralda, quase cor de água, que ela não tem na mala porque a mala foi roubada em Ákaba.
Afinal, sua mala foi ou não foi roubada? Por que mentir sobre um detalhe, para um desconhecido que não vai poder checá-lo? Por que tantas perguntas? Nos portos do mar vermelho se roubam até a cor da água-furta-cor dos corais incrustados sobre o lodo de uma antiga estrada submarina que dizem partir do mar morto até se ligar com os restos indevassados de Sodoma e Gomorra debaixo do golfo de riquezas afundadas. A noite sonha com tais imagens na cabeça da marquesa dos modelos escolhidos sob estrelas mais civilizadas: não deve ser diferente escolher um modelo sob a névoa das palavras em excesso nesta página (do modelo narrativo 3: literatura que não sabe que não é sofisticada: mulheres se banham com pressa, metem-se em calças e camisas masculinas mais práticas, mais fáceis de lavar e passar, em viagens). Modelo 4…
Chega. Como posso esticar a paciência do leitor até a próxima página parede e meia atulhada de referências à Avenida Atlântica iluminada dos prédios de apartamentos dos anos cinqüenta, sessenta? “Aquilo que ficou nos olhos do autor, na sua memória, nos seus ouvidos suavizados por um tempo melodioso” — uma falsidade lida de tarde, no parágrafo dedicado a Jobim, que Petra ouvia ao sair do quarto — sem saber que era Jobim — e no elevador de metal cromado, com impressos emoldurados (fotos de terracotas entre paredes porosas do museu nabateu, que estava fechado nesta temporada).
Quando ela chega ao térreo, o som flutua acima do desfiladeiro de cismas da noite apenas no começo de coisa alguma. A influência do cinema decora os bares cheios de garrafas da bebida que não torna a vida melhor quando se espera, impacientemente (na verdade) , uma desconhecida que caminha ao seu encontro com sandálias sem salto, estende a mão fria e se senta, o sorriso pregado com cola nos lábios sem cor nem batom, uma mulher tão diferente da esperada que você se cala entre os quês juncando a entrada debaixo do céu também pregado com cola, como um céu noturno cenográfico, de estúdio vazado para permitir a luz do sol e a luz artificial do longo filme sobre Sinclair Lewis e Mercedes Acosta a falarem obsessivamente sobre hotéis (de onde eu retirei essa sinopse absurda? Do pedaço de um sonho misturado com má digestão?).
A vida é feita dessas inutilidades misturadas com impressões nervosas e sais, frases e tubos de oxigênio (“ninguém esperava que Glauber fosse morrer”, dizia Paula, na fala real que parecia a de um filme do marido já morto). A cena está no meu livro, mas não tem explicação, exceto o fato, a suspeita de ser (a literatura) apenas uma ordenação de nadas (você está lendo sobre nada, enquanto eu penso que gostaria de ter visto, pessoalmente, a duramente lésbica Mercedes a descer a escada do Hotel de Petra, ao encontro do Garbo)…
Ela franze o cenho (“quem é Mercedes?”), eu me calo; ela talvez supõe que estou um pouco bêbado (“você está bebendo mais?”). Quando eu lhe ofereci, ela respondeu “não, eu não quero beber” — como se fosse uma muçulmana mal-humorada —, enquanto eu minto socialmente:
“Estou com um pouco de dor de cabeça.”
“E resolve beber?”
“Pois é. Bebida funciona ao contrário comigo: relaxa e faz passar dor de cabeça de calor, tensão. Petra…”
“Eu estou com um pouquinho também.”
Ela mente, de novo? Por falsa delicadeza?
Petra come bem (seu peixe, no prato, ou o que restava dele, cheirava a açafrão, um tempero delicado como ela já não parecia, àquela hora), aplicadamente, parece saborear cada pedaço com algo muito diferente da minha pressa ansiosa, de sempre, por saber se a comida — qualquer comida — está boa ou não.
Que horas eram? As dores eram desculpas imaginárias para uma noite como qualquer outra, lenta e ligeiramente desastrosa entre árabes estranhos e carneiros duros como pedra. Dores coincidentes de casais enfadados sob o ruído de um pequeno repuxo que marulhava bem no meio do saguão decorado com um painel de camelos parecendo sedentos sob as paredes róseas da antiga cidade ocre. Meu estômago é delicado para cores, quando, na certa, eu estou enjoado da noite longa do jantar de vítimas de um convite desastrado para voltar a se encontrarem (“para jantar”), tudo tem que ser explicado, de viajante para viajante estressado, turistas que se tornam mais gentis com estrangeiros, fora de casa, e árabes que vigiam moças disfarçadas de hóspedes solitárias.
Um ponto final na noite (e nas frases) aliviaria os personagens — e faria os leitores respirarem, aliviados. Os leitores no começo alvissareiro da noite do Oriente mergulhando em vulgaridade o nosso pequeno jantar malsucedido, enquanto mais um grupo de turistas chegava de Amann para invadir o restaurante com o rumor que nos expulsava do lugar onde já não se ouvia nem que raio de música de elevador rolava nas fitas atrás do caixa.
Não vi sinal do hóspede que eu estava esperando ver na sombra, aguardando que Petra saísse do restaurante. Não pude reunir coragem para perguntar, diretamente, se havia mais alguém com ela, no hotel agora agitado pela chegada do lote de hóspedes se apressando na direção do restaurante de som ambiente abafado pela recepção do grupo, que juntava mesas e sorria das piadas sobre os cansaços dos “roteiros” do dia.
Turismo. Eu odeio o turismo.
A despedida (“boa noite”, em português polido) foi desenxabida e cheia da vontade de fechar logo a porta do elevador — da parte dela mais do que da minha (pura falta de presença de espírito agravada por leve enjôo da comida?). E não havia ninguém, no corredor, parecido com o árabe refletido no espelho, o mesmo tipo de César Romero de olheiras que…
Não importa: Petra não podia estar mentindo sobre São Paulo, seus 13 anos, filmes caseiros e a foto de um pai que parece um amante mais velho (ela havia me mostrado o rosto de um homem que, mais jovem, dissera ter “semelhanças” comigo. Não vi semelhança alguma, embora a gente não se veja como os outros vêm a gente: é diferente o rosto do espelho daquele rosto que é o nosso para outrem). “Outrem” é engraçado. Uma palavra assim destroça o efeito, não? Ela aparece, curta e antiquada, no meio do corredor de flores que parecem artificiais — e são.
As palavras são um empecilho para a naturalidade — como as flores de plástico onde havia sido um jardim da antiguidade distante do mar salgado sobre as achatadas barrigas de dançarinas mortas há dois anos.