A viagem de Brennand (4)

Brennand interrompe a leitura que fazia de uma anotação num caderno marcado com letras de caneta esferográfica
O ceramista e artista plástico Francisco Brennand
01/01/2013

O que representa? Uns dizem que é uma baleia furiosa numa noite de tempestade, outros afirmam que é um castelo que há muito desapareceu nas montanhas circunvizinhas. Outros insistem que é o retrato mortuário da mulher do dono da taverna e como esta é iluminada por archotes, a fumaça intensa acabou por enegrecer os detalhes deste quadro inverossímil.
Herman Melville

Viagens são para dentro e para fora.

The moon and sixpence, de Somerset Maugham, foi o único livro que acompanhou o leitor compulsivo que é Brennand para uma releitura puramente sentimental (“esse foi o livro que decidiu minha carreira de pintor”), talvez durante a viagem empreendida em setembro, para uma Europa bem diferente das suas recordações.

“Você, que conheceu bem o poeta Tomás Seixas, sabe que ele nunca pisou lá, porque nenhuma Europa real poderia superar aquela que Tomás havia conhecido nos romances e noutras leituras da sua vida. Foi um homem que se dedicou a ler, desde a juventude; escreveu pouco (mas com grande qualidade), e há, mesmo, um pouco de diletantismo tardio na sua biografia, um belo diletantismo, próximo da arte o tempo todo e quase tão longe da vida quanto o personagem aristocrata do filme Violência e paixão, do italiano Luchino Visconti” — relembrou Brennand, ainda de costas, diante da janela semiaberta, olhando no meio da névoa que às vezes sobe da várzea do Capibaribe (as esculturas lá fora lembrando cerâmicas etruscas perdidas numa mata brasileira).

De volta à poltrona, mencionou o pintor que — estranhamente — ainda não havia citado:

“Paul Gauguin deu as costas à Europa, como Rimbaud havia dado e ainda alguns outros antes do jovem poeta. O pintor tomou o rumo das longínquas ilhas do Pacífico que, naquela época, constituíam a Polinésia Francesa. Era uma espécie de deus bárbaro, cujos ensinamentos nunca poderão ser descuidados — quase como uma força religiosa (Jamais les grecques!). Apesar disso, viajou com a Europa encravada no seu espírito (como no meu), naquela vertente da tradição ocidental que também eu não pude ignorar — porque está sempre presente em certos aspectos mais sofisticados das escolhas de um artista. Gauguin conseguia integrá-la na sua busca da arte do Extremo Oriente, na qual ele via inscrito ‘um grande sistema filosófico, com letras de outro’. São suas palavras: ‘Cri que ali conseguiria renovar-me a mim mesmo. Nestes momentos, o Ocidente está em vias de decomposição, e um homem forte pode renovar seu corpo, como Anteu, pondo, simplesmente, seu pé no…’”

Brennand interrompe a leitura que fazia de uma anotação num caderno marcado com letras de caneta esferográfica firmada contra o papel até quase cavar um sulco de relevo nas frases azuis, como o rosto de um tuareg “bárbaro” para um garçom de bistrô parisiense. Vai buscar outro caderno, procura avidamente uma outra anotação que demora a encontrar, e começa a ler como se fosse um pintor de 20 anos:

“Uma vez, referindo-se a um de seus quadros bretões, Gauguin disse que ‘não se parecia em absoluto às obras de Degas… Talvez algo japonês, mas pintado por um selvagem do Peru’. E disse mais: ‘Quanto a mim, recuei para bem mais longe, mais longe que os cavalos do Partenon… até o brinquedo de minha infância, o cavalo de pau.’”

Não interrompo. Um fio está se desenhando na cabeça do homem que voltou de uma viagem inesperada, em busca talvez de alguma quimera recuada para trás de muros derruídos como os da Bizâncio do pássaro de ouro que cantava com alma de mecanismos engenhosos quando o imperador surgia na sala do trono, para receber embaixadores empoeirados, selvagens das estepes entretanto assustados:

Ou falei de muros desabados? Porque ouvi o pintor de volta à solidão da Várzea a retomar o fio da meada:

“Talvez seja nessa direção que entenderíamos o desgosto de Gauguin ‘pelos mosaicos aperfeiçoados onde já não se vêem as junções das pedras’, embora você, com o seu agudo espírito crítico, tenha completado que ‘o conjunto da língua aperfeiçoada resultou no painel — ou mural — bizantino de Proust, ou no gaudiano, de Joyce’. Acontece, a meu ver, que em princípio Gauguin seria, também, de todo anti-Proust ou mesmo anti-Joyce. Enfim, um paladino do primitivo, contrário às Flores do mal baudelairianas e às cloróticas Evas ocidentais de unhas pintadas. Para ele, ‘na Oceania, sem nenhuma preocupação com a polidez, tudo é nu e primordial.’”

Achei que era hora de lembrar a síntese que poderia ter sido o lema de Paul Gauguin: pintar um céu vermelho no lugar do azul entrevisto por toda a gente.

Brennand sorri:

“Nada mais nem menos. As cores… suas conotações emocionais, suas forças secretas que meus 85 anos ainda interrogam… Lembra-se das ‘cores litúrgicas’ que mencionou? Vindas do medievo, com uma carga — esquecida — de diferentes significados.” — Faz nova pausa. — “Curiosamente, no domínio das cores, não foi o francês Henri Matisse o verdadeiro continuador de Gauguin, e sim o norueguês Edvard Munch. Todas as obras de Munch são um retrato de sua própria natureza atormentada e o emprego anti-naturalista delas tem exatamente as conotações expostas por Gauguin.”

“Kandinsky…” — comecei.

Ao que ele observou:

“Outro artista vindo do frio… Kandinsky dizia ter descoberto toda a gama dos sentimentos humanos nas cores das igrejas do Kremlim.”

“Lembro da frase” — confirmou um Brennand alheado, nesse momento, a água não tomada no copo, Wassily Kandinsky ainda não firmado à sua frente, com ou sem igrejas admiradas, porque Paul Gauguin seguia como fascinação maior na imaginação do homem que talvez também tivesse querido fugir deste louco e insensato mundo, naquela idade do sol que “só é jovem uma vez”.

Ele volta ao lobo atrás da porta:

“E lá Gauguin chegou aos alcances mais espiritualizados, como no quadro Cavaleiros na praia, de 1902, apresentando ao mesmo tempo uma realidade altamente transfigurada, típica do campo onírico e paradisíaco de toda a arte da pintura oriental…”

Também reviu Cavaleiros na praia?

“Não. Esse quadro está em o de um cuco, nos rel quanto o ra pintura capaz de nos arrancar das Zuriche a ser a sua, confessada ao curandeiro que havia acoEssen, no o de um cuco, nos rel quanto o ra pintura capaz de nos arrancar das Zuriche a ser a sua, confessada ao curandeiro que havia acoFolkwang Museum. Mas revi O enigma da hora, de Giorgio de Chirico, pintado em 1911. Uma obra preservada da indiferença da média dos turistas, pois só pode ser vista por convite do proprietário da coleção particular de Milão na qual ela está incrustada como uma jóia misteriosa e protegida dos olhares profanos. E talvez nem lá possa continuar a ser vista, depois do roubo chocante de obras-primas expostas no Centro de Arte de Roterdã, que eu pretendia visitar. Na madrugada do dia 16 de outubro, ladrões arrombaram uma porta lateral do Kunsthal e levaram sete dos mais valiosos quadros que pertenciam à coleção particular Triton, propriedade do empresário Willem Cordia e sua esposa, Marijke Cordia-Van der Laan. Eu tinha especial interesse em ver um deles: Mulher diante de uma janela aberta, pintado em 1888. Fiquei tão desolado que antecipei a minha volta para o Recife, depois de…”

CONCLUI NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho