A viagem de Brennand (1)

Fernando Monteiro conta um episódio de sua relação com o pintor Francisco Brennand
O artista plástico Francisco Brennand
01/10/2012

“A verdade é aquilo que com o decorrer do tempo mais se contradiz” — essa frase estava escrita (à mão, em francês) na falsa folha de rosto do livro La vie sentimentale de Paul Gauguin, de Jean Dorsenne, a mim apresentado pelo pintor Francisco Brennand como uma obra na qual o autor havia resolvido “limpar a imagem do selvagem pintor de ascendência peruana, transformando-o num perfeito bom moço, cuja paixão pela pintura fê-lo abandonar a sua amantíssima esposa”.

Segundo Brennand, o intrépido Dorsenne dedicara 157 páginas “para desfazer, de uma maneira sinuosa e elegante, qualquer resquício de ‘mau caráter’ do genial Gauguin”. E isto teria acontecido 24 anos depois da morte do artista, pois La vie sentimentalefoi publicado em 10 de julho de 1927, por coincidência o ano de nascimento do artista pernambucano.

Já deveria ter informado que essa opinião do Solitário da Várzea viera por mensagem eletrônica (embora Brennand não lide com computadores — na verdade, ele nem se aproxima deles — e toda a sua correspondência tenha que ser ditada, com a voz bem empostada, para a secretária Cristiane Dantas).

Da minha resposta ao seu e-mail, cito um único trecho:

“Os escândalos paul-gauguianos todos — e os desconhecidos, até! — que eu ansiava vir a conhecer, por empréstimo do livro que eu lhe trouxe da casa de CM, no Rio, caíram por terra diante da sua descrição do livro de Dorsenne. Porém, eu não deixei de ficar intrigado com essa ‘elegância’ com a qual esse autor teria pretendido, em 157 páginas, inusitadamente ‘defender’ Paul Gauguin — que, certamente, nunca pediria para ser defendido por algum francês bem-pensante, pouco conhecedor do (isso sim!) sinuosíssimo universo feminino e, noblesse oblige, talvez mortalmente ‘bom caráter’ (embora a pequena burguesia gaulesa nunca tenha sabido o que seria caráter — haja visto o caso Dreyfus, sobre o qual a ironia eu já não sei de quem formulou esta pérola: ‘Se Dreyfus não fosse Dreyfus, ele jamais seria um dreyfusard…’”

Parte de uma resposta que, depois, para mim próprio me pareceu…

Bem, nada disso tem importância — ou poderia ter — agora ou, ainda antes, diante do livro que eu vim a ler, por empréstimo de FB. Antes do mais, não se parecia, em nada, com a descrição brennandiana do conteúdo da obra editada por L’Artisan du livre (2, Rue de Fleurus, Paris). Reparei que o meu amigo não havia mencionado que ela estava provida, inclusive, de documents inédits… avec huit hors-texte — a respeito de Gauguin, ou da sua “vida sentimental”, seja lá o que Dorsenne quisera referir com um título assim, entre elegante (de fato) e, eventualmente, franco na medida dos tais “documentos inéditos” anexados. Francisco Brennand os vira? E assim mesmo emitira aquela opinião, tão desalentadora, sobre o livro?

Claro que eu precisava, antes do mais, indagar sobre isso ao artista pernambucano mundialmente renomado, e, quando fui fazê-lo, Cristiane Dantas surpreendentemente informou que ele havia viajado.

Brennand? Ele, que detesta viajar, sair da Várzea fosse para onde fosse?…

“Pois o ‘seu’ Brennand viajou, no final da semana, não avisou ninguém, deve ter pedido a outra pessoa que comprasse a sua passagem, uma vez que por meu intermédio não foi feita compra de passagem alguma…”

“E onde ele se encontra?” — perguntei, quase divertido com a idéia do artista tolstoinianamente fugindo, aos 85 anos, para as Ilhas Marquesas, por acaso?

E a resposta da moça (um tanto desconcertada, para dizer a verdade) foi:

“Ninguém sabe”.

O mistério prossegue
Até quando chegou o prazo fatal da remessa desta coluna para as mãos do editor Rogério Pereira, o pintor Francisco Brennand continuava desaparecido em lugar incerto e não sabido, conforme os velhos termos da linguagem cartorial. O assunto estava sendo mantido sob a mais absoluta reserva, no âmbito da família, e eu resolvi divulgar, aqui, alguns fragmentos da obra de Jean Dorsenne, os quais o “ceramista” (essa designação que o Pintor detesta, com toda razão) não me mencionou, em momento algum, pretendendo que La vie sentimentale de Paul Gauguin fosse algo despido de qualquer interesse ou, pior, inutilmente empenhado em “retocar”, com traços francesamente amenos, a vida “sentimental” do Selvagem da Polinésia.

Um parágrafo que eu deveria ter dividido em dois — e que talvez revele a irritante influência dos longuíssimos parágrafos de Gilberto Freyre sobre três ou quatro gerações de pernambucanos rebuscados em frases que poderiam ser reduzidas ao laconismo dos contos de Hemingway sobre pesca (seus romances são frouxos, paradoxalmente, e caminham para o esquecimento, seja por qual motivo for) ou, ainda mais radicalmente, à “twitteratura” que hoje impera em outros freires.

Bem, vamos ao primeiro dos fragmentos que podem, talvez, lançar alguma luz sobre a, digamos, estranha viagem/fuga de Brennand:

(Fala — supostamente — Paul Gauguin, nos tais “documents inédits”.)

O que era o corpo? Quão pesada era a natureza desse suporte que medeia todas as coisas — e que é, afinal, tudo que podemos saber de certo, antes do termo fatal que o anula, como a água fria de um pote apaga a luz de uma lâmpada de terracota?

A sexualidade levava a defrontar os limites do corpo para muito além do conceito de prazer a que está vinculada a (aparentemente) simples palavra.

Vocábulo sem centro, “prazer” então se tornava — ou podia se tornar, mediante o propor-se mais acima ou mais abaixo o buraco negro, branco ou cinza que investigamos nas zonas de sombra do sexo — uma nebulosa semântica de muitos significados principalmente sob o foco da moral que era uma invenção da mente, e não parte da natureza, como o sexo e o prazer que ele desperta, misterioso como a morte.

Mulheres (principalmente) que não conheciam todas as possibilidades do corpo não podiam compreender a essência profunda desse acontecimento obscuro no centro do sol da carne. Toda a idéia moral que construímos sobre isso jazia debaixo da lápide dos costumes, quase sempre colocados no outro da ilha de solidão da carne quando tocada por todos por tipos de comunicação com outro corpo — em quais termos, não importava (a Natureza não é moral, no sentido em que criamos a palavra para definir o que está, rigorosamente, fora do mundo animal no qual tomamos parte muito freqüentemente “culpada”)…

Havia coisas ainda “perigosas” a dizer sobre a sexualidade. Não devia ser assim. Não deveríamos ter “medo” de pensar que podemos legitimamente desejar morrer como fonte de prazer — porque isso, afinal, o que era? Apenas o prato invertido da consciência de Tânatos, ou seja, da morte como mediadora do instinto de viver (pois é possível também desejar a vida como fonte de morte). De certo modo, não havia a morte — só a vida, enquanto estamos vivos para sofrer e buscar o prazer, entre outras coisas.

O prazer — a “pequena morte” do belo mundo religioso dos antigos — podia, é claro, se perverter nesse caminho de conhecer o que diz respeito ao corpo como assustadora fronteira, ao sexo como limite (para ser ultrapassado, como todos os limites obscuros) dentro do mistério imemorial da realidade. E o que era a realidade? A ilha? O mar? O céu, numa síncope? Descobrira ciclopes dentro de si […]

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho