A matriz de “A matriz” (final)

"The mint" permanece vivendo numa espécie de limbo
30/10/2016

A voz soturna de Lawrence da Arábia é, aqui, quase irreconhecível — pois busca apenas gritar mais alto do que podem gritar, nos alto-falantes, os oficiais que dão as ordens absurdas. E os que queiram de fato ingressar nas Escolas de Soldados tendo como cicerone este roufenho Lawrence de Bovington (e outros campos), esqueçam o mito vestido de roupas principescas, com o cinto de Meca e a adaga de ouro. A esperança de rever o herói de Damasco deve ficar na estrada para o pó dos lugares sem nome, pois este é um livro que busca o aniquilamento, a morte em vida — e a encontra nas estreitas paredes dos estabelecimentos militares dos confins da Disciplina e da Ordem.

Aparecido só em 1955 — em “versão expurgada” —, seu rumor desagradável (para os militares ingleses) ainda ecoa nos ouvidos de quantos se lembram do choque da alta oficialidade que sempre vira em T. E. Lawrence uma espécie de ser incompreensível e soldado irregular por excelência: numa palavra, um insubordinado. The mint é da autoria, portanto, do “insubordinado” mal visto pelos militares burocratas, e é esse homem contraditório que torna a obra cheia da misteriosa amplidão de uma consciência livre que se quis submetida a todos os jugos… talvez para provar da liberdade, final, de abdicar da liberdade. Por isso, sua leitura é salutar (e, com certeza, necessária) porque nos faz entender que somos feitos de massa estranha — numa lição que não vem das rotinas que o livro detalha, mas daquela dobra onde a banalidade, ainda assim, não alcança banalizar o herói na lama. De certa forma, livro é o rascunho bruto de algum poema obscuro, escrito em prosa rasa, contando coisas que os superiores nunca perdoaram ao autor-recruta tê-las contado por solidariedade e pura indignação servidas da experiência de um homem de letras.

Quis o azar que tal impertinente, “baronete mal-nascido”, se bandeasse para o lado dos humilhados e ofendidos — e o seu Diário das iniquidades da farda conseguisse envergonhar, até hoje, quem dê ordens. Tanto é verdade que The mint permanece vivendo numa espécie de limbo (embora tenha determinado, realmente, muitas mudanças objetivas na RAF e no Exército — o que poucos sabem —, quando o autor do libelo já estava morto e sepultado sob a cortina final de cimento que mal nos protege, ainda, do fantasma vestido de árabe ou de soldado, ambos perigosos na luz e no limbo respectivos)…

Seja como for, no segundo livro de Lawrence se toca num homem vivo e descido aos infernos. Neste solo quente de grama e folhas queimadas, ele pisa fundo talvez para se tornar, afinal, humano — demasiadamente humano — ao lado da multidão de soldados batidos, cunhados e trabalhados, em molde, de modo a se tornarem nos números sob as suas túnicas, na identificação sem individualidade que une os galpões no borrão de um sono só, entre exalações de suor e sons de flatulência sob uma lua recortada pelas estreitas janelas da caserna. A individualidade que restava em todos eles, o traço único de cada ser humano ofendido e humilhado por seus semelhantes, só não ficaram esquecidos porque restou esta matriz de indignação poderosa que é The mint.

O livro não é agradável, é claro. Ou é escuro. Ele não exalta o desfiladeiro da alma — que era o alcantilado Wadi Rumm —, porém nos remete para uma sarjeta organizada que, de fato, nos pertence (estamos vendo bem o que somos, neste mundo de agora mais do que no mundo de T. E. Lawrence: a “pérfida Albion”, por exemplo, no seu orgulho desfeito, fora da Comunidade Europeia e, no momento, o nosso país do Trópico ignaro oferecendo o espetáculo político que acaba de encontrar o seu “grand finale” numa piada grotesca de ofensa à Democracia).

A matriz foi lançado, pela primeira vez aqui no Brasil, por sugestão minha à então diretora editorial da Record, a jornalista Luciana Villas-Boas. Isso foi em 1998.

Desde então, muita água rolou debaixo das pontes daqui e do resto do mundo. Luciana saiu da Record para se tornar uma agente literária que recomenda, em entrevista (à revista da Livraria Cultura) que os jovens autores “não percam tempo” com o Conto — que “não vende”, etc. — e, Poesia!, “nem pensar”… Sergio Machado, o editor da Casa do velho Alfredo, morreu neste ano, e o selo dele e da Luciana, que já foi o do “comunista” Jorge Amado, se tornou acolhedor da direita mais que agressiva que apareceu, nos últimos anos, para colocar a liberdade em alto risco entre nós.

O que isso tem a ver com A matriz? Como foi possível, Fernandinho, sair dos campos de quartéis ingleses da primeira metade do século 20, para um país de selvas políticas que atualmente nos obriga a sair das cidades (ao contrário) em busca do fantasma dos Fawcetts?…

Tem tudo a ver. Ou quase tudo — porque não somos Lawrences, não existe nenhum na nossa literatura, porém estamos praticando a literatura (sem marca) das matrizes ensinadas em “oficinas” que conformam uma “forma geral” pasteurizada, e também estamos elegendo o lado sombrio de nós mesmos para conformar um país e, talvez, transformá-lo num quartel-hospício de almas derrotadas, neste quarto final de 2016 a prometer somente sombra, suor e lágrimas (e para quem viver e puder ver com os olhos fora da fôrma que a individualidade segue apostrofando como “criminosa contra os homens”, contra os “soldados” cuja inocência — mesmo que relativa — Lawrence enxergava naqueles galpões de odores desagradáveis & máculas vergonhosas).

Na sua estranheza, A matriz assume uma curiosa forma de diálogo até mesmo com os longínquos brasileiros deste momento à beira de um precipício muito mais do que meramente literário. Literatura é destino e destino é a “moïra” que sempre temos de interrogar na noite escura da alma — conforme Thomas Edward interrogava, na sua insônia de quartéis cheios da indiferença ferrada na “pequena morte” que é “o sono sem sonhos”. A ele, parece, estaremos todos condenados daqui para a frente, no horizonte talvez sem esperança.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho